microconto

O máximo de intensidade com o mínimo de palavras, usando, para isto, os recursos da imagem, do  ritmo, da antítese, do paradoxo, do absurdo, do insólito, do estranhamento, da surpresa, do deslocamento, do desconcerto e da reviravolta.

Marcondes Araujo


(para serem lidos de forma aleatória, onde o cursor parar)



Todo cambia

Durante séculos a humanidade sofreu sob a ditadura do falo. Agora goza sobre a ditamole do glúteo. Evoé!


Estética

Acho linda a motocicleta que passa, em altíssima velocidade, diante de minha casa. Livre! Vertiginosa! Feliz! Feliz? Como odeio o barulho que ela faz! Precisa disso? Só pra chamar a atenção? Pra agredir e destruir minha admiração? Por que não passa livre e vertiginosa, talvez feliz, mas silenciosa e altaneira como um pássaro?


Autoajuda
- Pois é, amigo, a minha situação é essa...

- Amigo, eu até entendo. Mas, me desculpe. E a minha?


Recuerdos

Não há o que sofrer.

Esqueça.

Esqueça-os.

Que lhe esqueçam.

Esqueça-se.

Lembre-se disso.


Minha avó ranzinza

- Eu não suporto este povo dos programas da televisão, tudo com cara de feliz, na maior alegria. Tudo mentira! E agora o povo tá também, todo mundo sorridente, na tal da internet. Tudo mentira!


Estado de necessidade

A confusão no shopping, com seguranças correndo pelas avenidas de armas na mão, homens, mulheres e crianças se escondendo nas lojas e se deitando no chão, foi provocada por um homem que saiu da livraria com um livro escondido embaixo do paletó, e disparou na carreira ao ser denunciado, aos gritos, pelo vendedor. Foi pego pelos seguranças no estacionamento, e só não levou muita porrada porque era branco, careca, de meia idade, e usava óculos de grau. Mesmo assim, ainda recebeu alguns tapas no pescoço e torceram seu braço para trás. Na delegacia, ele disse que era escritor, e que furtou o livro, um romance recém-lançado por um autor norte-americano, porque estava desempregado e não tinha como pagar o valor do preço de capa. Colocado contra a parede pelo delegado, ele foi além na confissão, alegando que sua atitude deveria ser enquadrada na figura jurídica do estado de necessidade, e também ser reconhecida como uma experimentação literária e existencial, pois queria viver a mesma sensação do pretinho favelado que, no mesmo shopping, na semana anterior, fora espancado até à morte pelos seguranças, nos fundos do estacionamento, por haver furtado um pedaço de pizza na praça de alimentação. 


A adúltera do cego:

- Me perdoe, meu amor... Eu te amo. Eu te amo tanto, tanto, tanto... Te amo profundamente. Te amarei sempre. Sempre, sempre. O problema é que ele me vê!


Samba de véio

- Mãe! Mãe! A senhora não sabe como eu tô feliz!

- Que foi, meu fio?

- O nosso samba de véio, mãe!

- O samba do véio Firmino, irmão do meu bisavô. Juntava o povo todo dessa redondeza, aqui no terreiro de casa... Era samba a noite toda. Foi quando conheci o véio teu pai. Tirando versos pra mim. Acabou-se.

- Nada, mãe! Foi gravado pelo maior cantor do país, mãe!

- Oxente. E cadê o samba?

- Tá bombando, mãe! Tá bombando no rádio, na TV e na internet! Virou cultura de massa!

- Que diabo é cultura de massa, meu fio?

- Depois eu te explico, mãe.

- Tá, meu fio. Mas massa, que eu conheço, é só de beiju. Ou de cuscuz. Vem cá comer, meu fio. Tô tão sozinha...


11 de Setembro

- Sabe que data é hoje?

- Não.

- 11 de Setembro.

- E daí?

- Não lembra de nada?

- Hum... Deixa eu ver...

- ...

- Lembrei!

- Oba!

- O assassinato de Allende por Pinochet!

- Não!

- Deixe-me ver...

- ...

- Deixa eu ver... Deixa eu ver...

- ...

- Ah! As torres gêmeas!!!

- Nãããão!!!

- Oxe! E o que foi, porra?

- A gente se conheceu, amor!

- Ah...

- Viu, como astrologia é verdade?


Escusas

Saí pra passear com Totó e, mesmo na coleira, sabe o que ele fez? Cagou na porta da Igreja Universal do Reino de Deus. Tive que correr com ele, pra não apanhar do pastor e dos fiéis. Quis dar uma surra no danado, mas ele me desarmou com um envergonhado olhar de escusas. Como se dissesse: "Só não faz merda na vida quem faz da vida uma merda". 


Pose

Provoca-me tédio,

às vezes pena,

às vezes asco,

quem posa de feliz.


Quem é feliz

não precisa de pose.

É só feliz.


Quem mais sabe fazer pose

de feliz

é o infeliz.


Senha

"Entrar no espírito do Mundo".


Vício

Com tanta gente morrendo de câncer, pelo mundo afora, por causa do tabaco, a gente esquece a beleza que era o matuto preparando seu cigarrinho de paia, com fumo de rolo barato, soltando suas baforadas, dando suas cusparadas, pensando na vida e na morte, pensando na solidão, pensando na natureza. Filosofando.


Gordofobia


- Sabe a Priscila?

- Sei.

- Traiu a nossa causa.

- Que foi?

- Vai fazer a bariátrica.


O lobisomem

Acredite se quiser. Eu vi um lobisomem. Ele apareceu no quintal de minha casa, quando eu fui fechar o vitrô da varandinha do meu apartamento. 


Ajuste de conta

- Abra a porta.

- ...

- Abre a porta, amor!

- ...

- Amor, o que está havendo? Abre a porta!

- ...

- Por favor, amor...

- Abro não.

- ...

- ...

- Amor, deixe de brincadeira. Abra a porta!

- Abro não!

- Você tá ficando louco, amor? Abre essa porta logo, vai!

- Vá embora. Vá pra casa de sua mãe!

- Como?

- Vá pra casa de sua mãe. Só volte depois da quarentena!

- Amor, essa é minha casa, é o nosso apartamento. Você está ficando louco?

- Você sabe muito bem que sou hipertenso. Vá embora. Vá pra casa de sua mãe. Fique por lá enquanto durar essa pandemia dos infernos. E se cuide também.

- Amor, eu não acredito no que estou ouvindo!...

- Acredite, acredite sim. Estou me preservando. Sou hipertenso, e tenho obesidade, você sabe disso!

- Amor, minha mãe é diabética, você também sabe disso. E é uma senhora idosa...

- Pois é, já viveu demais. Eu só tenho 45 anos. Vá pra casa dela!

- Amor... Eu não sei se rio ou se choro... Abre a porta, por favor... Saí tarde do trabalho, estou chegando agora, cansada, do supermercado... Aquilo estava um inferno!

- Por isso mesmo. Deve estar empesteada de vírus.

- Usei álcool em gel, amor... E só tirei a máscara agora, aqui na porta, quando saí do elevador.

- Isso não vale nada, é conversa fiada.

- Claro que vale, amor...

- Vale não! Só o que vale é o isolamento. Isolamento total. Absoluto!

- Ô amor, você sempre defendeu o Bolsonaro...

- Aquilo é um doido, cheguei à conclusão.

- Tá certo, amor, botou a mão na consciência. Mas agora você tá levando essa coisa longe demais. Isso é paranoia!

- Pois é, você sabe que eu sempre tive tendência. Não é novidade pra você. Casou comigo sabendo disso. Tá na hora de assumir essa porra!

- Amor, por favor... Vamos falar sério... Abre essa porta, pelo amor de Deus. Eu estou muito cansada...

- Abro não. Vá pra casa de sua mãe.

- E as compras?

- Deixe aí na porta. Depois eu pego.

- Tá certo, amor. Aí eu vou pra casa de minha mãe, deixo você aqui sozinho, com essas compras que estou trazendo. E aí, o que você vai fazer com elas? Nem um café tu sabe passar...

- Eu me viro. Não é a primeira vez que vou ficar sozinho. Já morei só quando era estudante. Não morri de fome. Não morri de fome quando era solteiro e jovem, e não é agora, casado e velho, que vou morrer de corona-vírus.

- Amor, você não está velho. Ainda é jovem e forte o bastante para enfrentar essa doença maldita. Abre a porta, por favor...

- Abro não!

- Amor, eu já estou perdendo a paciência.

- Vá embora, já disse! Vá pra casa de sua mãe!

- Amor, eu já disse: ela é idosa, e diabética! Ela é que tem que ficar sozinha, isolada!

- Que morra!

- ...

- Vá embora!

- Olha aqui, amor...

- Que morra! Que vá para os quintos dos infernos!

- Olha aqui, Rodrigo. Você nunca escondeu que não gosta de minha mãe, mas eu sempre tentei relevar isso. Mas agora você está passando do limite. Você respeite minha mãe!

- Que morra! Que vá pros quintos dos infernos! Aquilo é uma alcoviteira, acobertadora! Me deixe sozinho!

- Que é isso?! Você está louco! Até parece que está aproveitando a situação para um ajuste de conta. Mas não me venha com...

- É isso mesmo! Você sabe muito bem do que estou falando. Mas é pra isso que servem as guerras, as pandemias! Pra fazer limpezas... Higienizar as pessoas... As relações... Poderemos vir a ser outras pessoas.

- O que você quer dizer com isso, Rodrigo?

- Você sabe muito bem.

- Sim, eu sei muito bem. E fico muito triste com isso, com você agora querer voltar a esses assuntos... Revolver seus traumas... Coisas que eu pensei que a gente já tinha superado...

- Superado uma porra! Isso fica incumbado dentro da gente como um vírus. De repente vem à tona, como uma peste, como esse corona! Vá embora!

- Você é um imbecil! Um ressentido! Um frustrado! Um paranoico! Um machista idiota!

- Vá embora, sua vaca! Sua traidora! Sua dissimulada! Sua Capitu de meia tigela!

- Meu Deus do Céu...

- Pode chorar! Pode chorar! Mas vá chorar lá com a sua alcoviteira, no ombro de sua mãe! Sua Capitu do Paraguai! Nem um filho suspeito você quis me dar! Vá embora!

- Que loucura! Eu vou mesmo! E vou levar as compras! Fique aí, sozinho, com seus fracassos! Se quiser, me procure na casa de mamãe. Não volto mais aqui!

- Procuro porra de ninguém não! Deixe as compras!

- Morra!

- Deixe as compras, sua vaca!

- Morra!

- Morra você, e a vaca de sua mãe! De corona-vírus! De Covid-19!

- Morra de fome! De solidão!

- Morra!

- Morra!


Deus (a Criação)

"Me vi agora como um doido,

ou uma criança,

a imaginar."


Tapa na cara

- Olá, ó, o carro do bacana se afastando!

- Anota a placa! Anota a placa!

- O que foi que ele fez?

- Deu um tapa na cara do rapaz! Do morador de rua!

- Ó ele aqui, ó, o rapaz.

- Foi sim, deu um tapa em meu rosto.

- Por que, véio?

- Sei não, véio. Ele parou o carro, me chamou, ofereceu cinco conto. Eu fui lá pegar, e agradeci: Brigado, meu patrão. Aí ele aproveitou que eu cheguei perto e me deu o tapa na cara. "Vai trabalhar, vagabundo!".

- Porra, véio! E tu fez o quê?

- Fazer o que, véio? Fiquei olhando pra ele. Ia fazer o quê?

- Anotou a placa, véio? Quer chamar a polícia?

- Pra que, rapaz! O cara é um bacana.

- Entregar a Deus, né, véio?...

- E os cinco conto?

- Sei lá... Não dá nem gosto... Pior do que se tivesse sido roubado. E eu nunca fui de roubar ninguém. Nem nunca recebi tapa na cara. Nem do meu pai.

- Entrega a Deus, véio. Entrega a Deus.



Velho Oeste


- Bora brincar de cobói?

- Bora!

- Eu sou o artista!

- Não, o artista sou eu!

- Não, sou eu. Eu que chamei.

- Tá bom. Eu sou o bandido.

- Pam! Pam! Pam! Tu morreu!

- Morri não! A bala não pegou!

- Pegou sim! Mirei na testa!

- Passou de raspão!

- Então, Pam! Pam! Pam! Morreu! Mirei no peito!

- Morri não! Não pegou nenhum tiro!

- Ah, vá pá merda! Não quero brincar mais não! Você não quer morrer...

- Tá bom, bora. Morri.

- Então vive de novo, pra gente continuar. Pam, pam, pam! Morreu!

- Morri não! Não pegou! Pam, pam, pam! Agora tu morreu! Foi bem de perto.

- Morri não! Artista não morre, seu besta!

- Morre, sim! Se tu não morrer, não quero mais brincar.

- Então, morre tu primeiro. Eu já tinha te matado antes.

- Morro, não. Eu sou o artista. Quem deve morrer é você.

- O artista sou eu, rapaz! Tu é o bandido!

- Sou o bandido não. O bandido é tu.

- Eu que chamei. O artista sou eu.

- Mãe! ó pra esse idiota querendo me matar!

- Tá bom, nenhum dos dois morre. Vão tomar banho agora!

- Idiota!

- Besta!

- Larga o cabelo dele, menino! E tu, peste, não morde teu irmão, não!

- Idiota!

- Idiota é tu!

- Pára com isso! Tirem a roupa! Já pro banheiro, os dois! E sem as pistolas! Que é pra não se matarem.


Vício

Com tanta gente morrendo de câncer, pelo mundo afora, por causa do tabaco, a gente esquece a beleza que era o matuto preparando seu cigarrinho de paia, com fumo de rolo barato, soltando suas baforadas, dando suas cusparadas, pensando na vida e na morte, pensando na solidão, pensando na natureza. Filosofando.


Negrinha

Vi, agora, o desfile de uma rainha. Apenas passou por mim, na rua, sem discurso, sem queixumes, sem desgostos, sem querelas. Apenas ela. Só ela. Mas nunca vi coisa tão forte, nunca vi coisa tão bela.


Lembranças da praça

Foi bem aqui, por trás dessa moita de não sei de que planta era, que a gente se conheceu, e se entendeu. Pena que a foto esteja comida pelas traças justamente no local onde a gente voltou a se encontrar, eu com minha mulher e meus filhos, e tu com teu marido e teus filhos. Mas lembra que a gente ficou procurando com o olhar a moita que não existe mais, e que não sei de que planta era, e que foi por trás dela que a gente se conheceu, se entendeu, e se esqueceu?


Memórias

Lembras de quando eu te chamava com um assobio na esquina da rua onde tu moravas? Pois a tua casa deixou de existir, hoje é um estacionamento. E na esquina funciona um semáforo.


Totó e o poodle da madame


Encontrei-me outro dia com Totó. Assisti, do outro lado da rua, a uma escaramuça rápida que ele teve com um poodle, quando este desfilava, encoleirado, limpinho, cheiroso, elegante e feliz, com a empregada da madame que foi comprar pão na padaria ao lado do condomínio. Totó imobilizou o poodle contra o meio-fio, enquanto a empregada da madame gritava por socorro. O poodle ganiu, ganiu, e depois saiu latindo. Mas não foi nada demais. Totó, no fundo, é inofensivo. Veio em minha direção, balançando o rabo, como se estivesse sorrindo e dizendo: "Quem não é capaz de deixar qualquer legado está adorando esses tempos de efemeridades e superficialidades. E se achando assim, ó, superior."


Acerto de contas

- "Levei muito tempo para pegar o tom adequado das palavras. O jeito certo de dizer as coisas. De desferir uma facada por baixo dando adeus com um beijo amoroso e um caloroso olhar de ternura. E receber de volta um embaraçado sorriso de surpresa e de gratidão."


Parque de diversões

Sorrindo, às lágrimas, com o celular na mão: "Inútil a evidência que essa roda-gigante me dá".


Fonte

No rosto, dois olhos d´água.


Cartão-postal

"... E eu estou por aqui, zanzando feito um zumbi."


Totó, o comunicólogo

Sujeito livre e independente, o vira-lata Totó era amigo de todos os cachorros de rua do quarteirão. Exceto um robusto pitbull que, encoleirado, tomava conta da lanchonete onde havia, na calçada, uma televisão-de-cachorro. Resignado, ele falava para os parceiros da rua: "Não sei se odeio ou tenho pena de quem tem a cara da empresa onde trabalha".


Éter

- Quando penso em você, fecho os olhos de saudade. Mas, quem é mesmo "você"?


Stripper

"Eu sou um ser humano em construção", disse-me ela, desfragmentando-se ao celular, em frente à televisão.


Autodidata (lições da vida)

"Me fodi!", disse, às gargalhadas (mas apenas para si mesmo), o velho e sábio aprendiz de feiticeiro.


Sons

Conselho de um velho e sábio cachorro de rua: 

- "Experimente não entender, como eu, as palavras das pessoas que falam à sua volta. Sinta apenas os variados ritmos e entonações das vozes. Compreenderás, então, a linguagem universal."


Hestória

- Infelizmente, não há nada mais verdadeiro do que esta nossa mentira.


O limbo (Conversa de bêbado)

- São como animais. Não conhecem o passado. Não anteveem o futuro.
- É. Só conhecem o presente.
- Mas, pelo menos, são livres.
- É. Vivem felizes, no limbo.
- Quem? Os animais?
- ...


Autoexorcismo

- E eu, que me considerava um bom.



Teoagonia

Preciso inventar um deus,

pra poder acreditar em Deus.



Autenticidade

- Ela é uma farsa, mesmo quando diz, com ensaiada convicção: "Eu sou uma farsa!


Distinção

E eu, aqui, sozinho. Tomando meu cafezinho. Pitando o meu cigarrinho. E ouvindo, maravilhado, a peste de um sabiá. E, lá ao longe, perto de mim, o canto de uma acauã, de uma asa-branca, e também de um bem-te-vi.


O guarda-noturno

A silhueta encapotada cruzou a rua em passos soturnos e compassados vigiando o silêncio sepulcral de um tranquilo passado soterrado por tiros edifícios viadutos e metrôs. 


Churrasco na área da piscina

- Olha, amor! Estou vendo aqui no grupo do condomínio: acabou de morrer uma criança afogada aqui na piscina!

- Vixe! Por isso que vi uma correria. Povo doido!

Reencontro

- Oi! Há quanto tempo! Você está ótimo!

- Você também.

- Pois é...

- É... Existe vida além de nós.

- Sim, sim.


Civilização

A bateria esgotou no meio de um bate-papo empolgado de amig@s sobre arte e literatura, na mesa de um bar. Mesmo assim continuou à parte, calad@ e concentrad@, fazendo de conta que se ocupava de algo muito sério, mexendo com o dedo inteligente sobre a tela escura do aparelho celular.


Ética de pistoleiro

- Eu vi que ela estava pronta pra cair em meus braços. Era só ficar viúva, cairia nos meus braços. Mas eu gosto dela, perdi a coragem. Desengatilhei o rifle, deixei ele passar. 


Mistério da Fé

- ...

- Meus desígnios? Perdoe-me, mas Eu mesmo jamais os compreenderia.


Desabafo de Deus

"Eu só queria me ver livre da criação".


Meu herói

Quando eu era criança meu herói era o vaqueiro Manoel. Todo encourado, em cima de um cavalo branco. Eu morava numa rua que era passagem de gado trazido das fazendas para o matadouro. E o vaqueiro Manoel era um dos vaqueiros que iam buscar os bois para o sacrifício. Quando tinha boi valente pra trazer, eu o via passar na porta lá de casa, com dois ou três companheiros, todos encourados, pra cumprir a obrigação. Aí ele parava lá na porta lá de casa, tirava o chapéu de couro e dizia pra minha mãe: "Dona Clara, hoje tire o menino da rua, que vou trazer boi valente". Falava sério, com um dente de ouro brilhando. Eu descumpria as ordens de minha mãe e, junto com outros meninos, subia na laje de uma casa em construção, e ficava aguardando Manoel voltar da fazenda com o boi valente, levando o bicho brabo para o matadouro. Lá vem o vaqueiro Manoel trazendo pela rua o boi valente, amansado pelos aboios e toadas dolentes da vaqueirama. Aí, quando o boi chegava perto de nós, a gente começava a gritar no alto da laje, jogando pedras no barbatão. Aí o boi se assustava, estancava no meio da rua, e parecia dizer "não, daqui eu não passo, vocês não vão me levar não". E arremessava os chifres pro lado, dava meia volta, driblava os cavalos dos vaqueiros, e disparava pela avenida, querendo voltar pro sertão. E o vaqueiro Manoel, que tanto carinho tivera por mim, alertando minha mãe para não deixar-me na rua, olhava pra nós, em cima da laje, e antes de esporear o cavalo pra resgatar o barbatão, brandia o chicote no ar e gritava "Filhos da puta!". Ele não sabia que eu só queria era ver o meu herói em ação, era vê-lo derrubar o boi, puxando-lhe o rabo no meio da rua, e saltar em cima dele, puxar-lhe a cabeça pra trás e colocar-lhe uma careta e um cambão.


Terapia

Eu quero ficar louco

para internar-me

e tratar com os loucos

de assuntos normais


Linhas tortas

Nos escombros do prédio que desabou, por causa das chuvas, nas encostas de Salvador, matando um velho e duas crianças, o bombeiro encontrou, escrito num pedaço de pau: "Deus é amor"


Retomada

(Abertura de uma obra póstuma)

" - Nunca mais escrevi nada. Mas tenho muito o que dizer. Deixe eu tentar agora (...)". 


Moderação

"Esqueça. Deixe de ânsia". E apertou o gatilho.   


Seca

Ajoelhou-se na terra esturricada, ergueu as mãos para o céu azul e agradeceu a Deus pela água que chegava em um carro-pipa.


Explicação

Foi a única atitude digna que tive na minha vida antes de me matar. Mas ela não teve coragem de abrir a carta.


Lampião no Inferno

- Prazer, sou Lampião.

- Prazer, eu sou o Cão.

- E aí?

- Venha comigo.

- E agora?

- Diga aí...

- ... Aí.

- Vá-se pros Infernos!

- Vá você, seu filho da puta!

- Filho da puta é você!

- Vade retro, Satanás!

- Oxe...

- Oxe uma porra! É oxente mesmo! Vá abreviar sua indignação nos quintos dos Infernos!

- Creindeuspai...

- Creindeuspai uma porra!

- Oxe!


Melancolia

A nuvem negra se dissipou. E veio um raio de sol, num dia tão lindo para chover.


Velório

"Sei muito bem o que me espera: o Nada. E isto, pra mim, é Tudo".


Anacronismo

Saudade de um tempo que não vivi

Chorando um filme que não assisti

Um romance ou um poema que não li

Uma utopia que não cri


A viúva (Memórias póstumas)

Durante anos ela guardou meus poemas escritos em um caderno de papel pautado. Tinha dedicatória e tudo, e até uns cupidos e corações que eu mesmo desenhei com lápis de cor. Aí veio o facebook e ela jogou tudo fora.


Meus botões

Eu estava aqui, deitado na rede, no alpendre de minha casa, fumando, tomando cachaça e pensando com meus botões... E aí percebi que estava sem camisa. E aí, meus pensamentos... E aí vi que estava livre dos meus botões.


Astrologia

Uma estrela risca o céu. E a única coisa que sei daquela estrela é que ela vai a lugar nenhum.


Furacão

- Em volta, destruição total.

(Câmbio...)

- Aqui no olho, tudo em paz.

(Câmbio...)

(Câmbio...)

(Câmbio...)


Encalço

"Deixei minhas pegadas no asfalto da rodovia. Mas era um asfalto vagabundo, que derretia. Por isto não me orgulho desse rastro não".


Paisagem

Este deserto

com um cacto vistoso

é um céu nublado.


Luz para todos

Nunca vou te esquecer, Angelita. De nossas brincadeirinhas ao escurecer, cá no fundo do quintal. Todo mundo na cozinha, Angelita, conversando em torno do fifó. E nós brincando, Angelita, só a gente no escurinho, cá no fundo do quintal. Agora todo mundo tá feliz, Angelita, com a luz elétrica. Fica todo mundo, Angelita, lá na sala de visita, assistindo televisão. Até tu, Angelita, vendo só televisão. E eu sozinho, Angelita, só chupando manga, Angelita, cá no escuro, cá no fundo do quintal.


À deriva

Embarcou na jangada improvisada com troncos de bananeira e um lençol de cama de casal servindo de vela. Levou apenas um garrafão de água mineral, outro de cachaça de alambique, um saco de farofa, cinco pacotes de cigarro, dois isqueiros da marca Bic, umas dez barras de rapadura, um litro de mel de uruçu, uma manta de carne-do-sol, uma sombrinha da cor lilás, um smartphone com um amplo repertório de blues, salsa e baião, e um bocado de livros furtados da biblioteca municipal. Desapareceu na linha do horizonte. Acharam apenas, boiando nas águas, já perto da praia, umas páginas de Vidas Secas,  A Relíquia e O Velho e o Mar.


Resignação

Perguntou-me: "Se você é honesto, vai fazer o quê? Matar?". Eu até quis dizer que não. Mas, quem sou eu...


Palimpsesto

Abriu o livro. Onde deveria haver a dedicatória escrita a mão, a página estava em branco. Folheou o livro: todas as outras páginas também permaneciam em branco.


No Purgatório

Sabe com quem Lampião se deparou no Purgatório? Com Jesse James!
- Prazer, eu sou Lampião, disse Virgulino.
- E eu sou James, Jesse James, disse Jesse James.
Desconfiados, como todo bandido, os dois olharam em volta.
- Alguém está nos escutando?, perguntou Jesse James.
- Tá sim. O Cão! A pessoa mais sincera do mundo.
- Ah, bom! Então vamos ter um julgamento justo, disse Jesse James.
- Concordo, disse Lampião. E se prepare, que aí vem bala!


Boca de forno

- Boca de forno!

- Forno!

- Faz o que eu mando?!

- Faço!

- E se não fizer?

- Levo bolo!

... !!!

- Fica aqui, peste, escondidinha... Assim... Assim...

- E se ele mandar?

- Levo bolo...

- E eu?

- Tu também.

- Tá...

- ... Boca de forno!...


Comunhão

Um cálice de vinho, e uma hóstia como tira-gosto.


Anamnese

O consolo veio do próprio doutor: "Veja bem, todo mundo precisa, para viver, de uma doença qualquer. Seja ela qual for".


Gago cantand0 não gagueja

Lampião chegou na Canoa, distrito de Senhor do Bonfim, antiga Vila Nova da Rainha. A cabroeira se espalhou pelo povoado, tomando cachaça, cobrando tributos nas vendas e nos armazéns. Lampião entrou numa bodega. Tinha um matuto ao pé do balcão. Lampião pediu um conhaque, tirou do bolso um cigarro de palha, ofereceu pro matuto: "Vosmecê pita?". O matuto respondeu: "Pito não, mas se o sinhô quisé qui eu pite, eu pito". E pitou. Enquanto isto, os valentes de Senhor do Bonfim, antiga Vila Nova da Rainha, sabendo que o Rei do Cangaço estava na região, se entrincheiraram para aguardá-lo, na entrada da cidade. Para recebê-lo a contento. Aí surgiu no horizonte um cavaleiro a galope. Acenava com a mão, pra não receber bala. Era um gago, que vinha da Canoa. Por ser gago, e nervoso, não conseguia falar. Alguém lembrou: "Gago não gagueja cantando". Aí ele cantou: "Lampião tá na Canoa, e quer invadir Bonfim...". Mas Lampião não era besta não. Encheu, na Canoa, os alforjes de dinheiro. Não matou ninguém, e nem invadiu Bonfim.


Anacronismo

Quando ouviu o som dos fogos de artifício que explodiram lá no outro quarteirão, eles já estavam apagados. Mesmo assim, emocionou-se.


TAC

- Então tá. Façamos entre nós um termo de ajustamento de conduta.
- É. Eu finjo que te esqueci, e tu finges que me esqueceu.
- É...
- Tá bom...
- ...
- Isto cabe recurso?


O rato

Flagrei, de madrugada, diante do meu computador, o rato que roía meus livros. Estava sentado em minha escrivaninha, de pernas cruzadas, usando meus óculos, e nem me deu importância.

- O que você está fazendo aí? - gaguejei.

Sem me olhar, e sem parar de digitar, ele respondeu:

- Estou escrevendo um romance sobre o drama dos meus companheiros, que vivem nos lixões, na sarjeta e nos esgotos e, sem que o saibam, sabem tudo sobre mim...

Aí descruzou as pernas, tirou os óculos, olhou para mim, fez pose de intelectual e finalizou, num tom hollyoodiano, de Steve Spielberg, e de condescencência, acho até que de desprezo:

- ... Sobre nós.

Ah! rato metido a besta!


Oração de São Ninguém

"Livrai-me, Senhor, de minha própria opinião".


Meu cigarro de palha

 - Este cigarro não precisa de filtro. Não tem rótulo, não tem marca. É totalmente natural. A fumaça que sai dele é pura e perfumada como o hálito de uma criança.

- É maconha, pai?

- Não, filho. É o cigarro dos deuses.

- Dos deuses?

- Sim, filho. Os deuses também se viciam.

- E quais são os vícios dos deuses, pai?

- Qualquer um que apenas produza sonhos, e traga apenas e tão somente o prazer.

- Então posso fumar um deste, pai?

- Pode, filho. O único risco que você corre é sonhar com o amor de uma mulher.

- Que nem naquela música de Luiz Gonzaga, né, pai?: "... que só me falta uma bonita morena, pra mais nada me faltar".

- Isto, filho, isto. Mas tome este isqueiro. Cigarro puro gosta de apagar, e você tem que ficar acendendo a todo momento.

- Tá, pai.


Pontaria

- É miudinho demais, João, não presta pra comer não.

Foi o que eu disse, olhando pro papa-capim que pousou no olho da árvore.

- Serve pra treinar pontaria - disse João, já esticando o badogue e se posicionando embaixo do cajueiro. Eu também estiquei o meu, e vi que na frente do papa-capim havia um galho, bem fino, quase da grossura do papa-capim. João atirou e errou. O papa-capim nem deu fé.

- Atira, porra! - sussurrou João.

Eu atirei, e acertei o galho. E o papa-capim voou.

- Pontaria ruim da peste, hômi! - gritou João, dando risada.

Eu baixei o badogue e fiquei sorrindo.  


Binóculo invertido (suposto quadro de René Magritte)

Tão ao alcance da mão. Mas tão distante.


Tributo

- ... Para lembrar-te de não nos esquecer...
- ... Como se a gente precisasse disto...


Deontologia

Publicitário não devia vender ideias, nem emoções. Só mercadoria. Ideias e emoções ficam pra nós, os bestas.


Catarse

- AAAATTTCHINNNN!!!
- Creindeuspai! Que espirro!
- A gente nem pode dizer "saúde"... Quer expulsar a alma, é?
- Não! Quero expulsar vocês, os demônios, e toda a sua corja!


Declaração de amor

- Preciso ser o estranho na sua vida.


Conto erótico

- O mistério é o nosso coito.
- E o silêncio nosso orgasmo.


Exéquias

- Por que não veio ao seu próprio enterro?

- Decidi que não perco mais tempo com ninguém, nem comigo mesmo.


Louco

O cara que matou os pais, o professor, o padre, o pastor e a psicóloga: "Eu só queria me destampar ".


Ponto final

Foi uma decepção geral o bilhete que ele deixou: "Apenas perdi a vontade de viver".


Fícus

"Te espero ali, à meia-noite, debaixo daquela árvore que fica na esquina. Mas não te esqueças, peste: aquilo ali é uma encruzilhada".


Resignação

- "Eu não tenho medo de suas mentiras! Tenho medo é da minha verdade!".


Orgulho

"Volta", pensou. Apenas pensou.


Vis-à-vis

Vi-o caído na calçada, com uma garrafa de cachaça na mão e um vira-lata sentado ao lado. Também já fiquei assim sobre o tapete da minha sala, com uma garrafa de uísque na mão e meu fox-terrier sentado ao lado.


Palavra

Meu pai não era jornalista, nem escritor. Pelo contrário, nem sabia ler. Por isto eu achava ainda mais lindo e surpreendente quando ele dizia: "Fui criado num tempo em que a Palavra tinha valor".


Esquecimento

"Eu jamais te esqueceria. Mesmo que tu me pedisse", disse assim, num altivo desprezo pela memória.


Decolagem

- Era sempre na hora da aterrissagem que a gente fazia amor. Mas mudaram a rota do avião.


Conversa de puta

Foi uma puta completamente bêbada, rapariga de um palhaço em decadência, que me veio com esta conversa besta: "A maior nobreza de um artista é assumir o risco de se tornar ridículo. Mas palhaço fica fora disto. Palhaço é nobre porque é ridículo? Ou é ridículo porque é nobre?".


Fé no barraco

- Com duas doses tu já fica bêbado!

- E tu, com este rosário, fica como?

- Entregue ao Senhor.

- Bêbada! Bêbada! Bêbada!

- Rezemos ao Senhor...

- Creindeuspai!

- Misericórdia!

- Amém! Amém! Porra!!!



Atestado de óbito

(...) um suspiro (...)


BO (Boletim de Ocorrência)

(...) um suspiro (...)


Liberdade

Todas as noites de lua cheia o fugitivo retornava ao presídio usando o mesmo túnel pelo qual havia escapado e que ia dar no pátio do banho de sol. E ali espichava-se no chão, junto com os gatos, pra tomar banho de lua.


A Compadecida

Apiedou-se dos meus sonhos, e me fez dormir.


Cena

A mulher e a menina, saindo do carro, com as compras nas mãos. A mãe e a filhinha. Qual das duas a mais linda, qual das duas mais faceira? E eu aqui, só espiando.


Confrarias

Piso-te no pé, por debaixo da mesa.


Crucificação

- "Ô peste! Por que não me abandonaste?!"


Convicção

Ajoelhou-se e cruzou os braços: "Na dúvida, prefiro crer".


Profanação

O mamulengo deixou os colegas apavorados ao bailar sozinho na coxia do teatro e concluir o espetáculo com uma heresia: "O talento é meu!".


La ventana

Ao se despedir, a porta bateu violentamente às suas costas. Ela ainda quis abri-la e explicar que foi uma rajada de vento que entrou pela janela escancarada. Mas deixou ficar assim. Na calçada, ele ainda olhou pro apartamento. E a viu na janela, contemplando a luz do luar.


Empreendedorismo

O meu vizinho é um sujeito empreendedor. Começou com um mercadinho e está aí, ó, construindo um prédio de três andares. Trabalha direto, todo fim de semana e feriados. E eu aqui, ó, na pindaíba, lendo romances, livros de poesia, e construindo versos inúteis. Inspirados pela cachaça que compro, quase todos os dias, às vezes fiado, no mercadinho dele.


Decomposição

Prag (m) a (tismo)!


A dissecadora

(para Kafka, Poe e James Ensor)

Senti o momento exato em que ela me abriu de cima abaixo, achando que eu ainda estava vivo. Aí deitou-se ao meu lado, deu um suspiro profundo e adormeceu, cheirando o meu pescoço .


Meu pai

- Não diga isto nunca a sua mãe, mas foi no brega que eu aprendi a respeitar uma mulher.


Apostasia

Ele tinha fé, chegou a se confessar, mas matou o padre no momento da Eucaristia para mostrar que as coisas não são tão simples assim.


Iniciação frustrada

Eu a ganhei do meu tio, vaqueiro véio lá das caatingas de Jaguarari. E a criei por três semanas, brincando na minha rua, entre bicicletas, bonecas e metralhadoras. Ela vencia tudo isto, acompanhando-me para onde eu queria ir. Era a inveja do meus coleguinhas. Meu tio, não sei porque, levou-a de volta para as caatingas, pra depois me dizer que ela foi morta por uma picada de Jaracuçu. Minha Betinha, minha cabritinha, meu inocente bichinho de estimação! Escapaste, peste, do meu primeiro pecado.


Dignidade

"Eu te amo, peste!", disse o bode para a cabra, ao ser levado para o abate.


Jardim da Infância

- É meu!

- Este é meu!

- Meu!

- Meu!

Brincavam os meninos riquinhos, no Jardim da Infância, passando as páginas da revista de automóveis, aberta no chão, e colocando as mãozinhas sobre as fotografias dos carros de luxo. O filho do vigilante, que ali estudava por um favor, observava caladinho, por detrás dos coleguinhas, e de repente empurrou dois deles para o lado e ficou pisoteando a revista. 


O vaga-lume

Minha mãe contava que um menino foi morto a tiros pelos moradores do povoado onde ela morava depois que subiu o morro, na boquinha da noite, e esfregou o corpo todo com um bocado de vaga-lumes que piscavam em torno do tronco de um mulungu. Ele desceu a ladeira correndo e sorrindo, com os braços abertos e gritando "Sou luz!", e os moradores acharam que ele estava querendo era arremedar o Menino Jesus.


Sonhos

- Ele me contou que teve este sonho com você: ...

- Foi?!...

- E que você disse que teve este com ele:...

- ... Foi...

- E que quase foi à loucura por causa deste:...

- ... Então, este sonhamos juntos...


Fim

... Foi indo, foi indo, foi indo... E secou.


Adeus

Ela abriu os olhos, e ele aproveitou a última chance de pedir perdão.


Esquizofrenia do carteiro

- Aqui estou, com uma carta na mão, dividido entre a missão que me é peculiar e a certeza do desastre que posso causar, ou evitar. Porque sou honesto, e conheço os segredos que devo entregar.


Almoço de domingo

Minha mãe arrancava as penas da galinha na bacia de água quente e ficava repetindo: "Nunca mais será a mesma coisa".


Realismo fantástico

Passava eu pela rua e assisti a uma cena fantástica: um menino deu um tiro na testa de uma mulher, olhou pra mim sorrindo e falou: "Filma aí, tio! Joga no zap, no facebook".


Condescendência

A diarista salvou-se da morte. Passou para o assaltante armado com uma garrucha um celular vagabundo. Ele o arremessou contra o chão e escarrou na cara dela: "Pobreza da desgraça!".


Virgulino  pra Maria Bonita

 "Só, sinto falta de uma coisa, de tu, peste".

 "Só sinto falta de uma coisa de tu, peste".

 "Só sinto falta de uma coisa, de tu, peste".


A embriaguez do vampiro

Esvaziado o garrafão de sangue-de-boi, o vampiro aguardava, na torre do seu castelo, os primeiros raios da luz do sol. E perguntava a si próprio: "Por que as pessoas, hoje em dia, se comprazem tanto em ser desinteressantes, meu Deus?".


Escolha

a) Resultou numa vertiginosa queda para o Abismo o espalhafatoso voo da ave de rapina tentando se libertar de suas penas para voar mais alto.

b) Resultou numa vertiginosa queda para o Abismo o espalhafatoso voo da ave de rapina tentando voar mais alto para se libertar de suas penas.


Gladiador

Abriu o livro e jogou-se às feras.


Legado

Uma garrafa peti, vazia, lançada ao mar.


Paroxismo (ready made)

O pintor rasga a tela em branco com uma faca e revela, por detrás do quadro, sua obra-prima: um buraco na parede que vai dar pro Abismo.


Quântico

"Existe, sim, um mundo paralelo", admitiu, finalmente, olhando-se no espelho.


Naufrágio

A mulher, linda, maravilhosa, agarrou-se, no desespero, ao seu pescoço, tentando salvar-se do afogamento. Ele sabia nadar, mas se deixou arrastar, com ela, pela correnteza. E teve tempo de sussurrar-lhe ao ouvido: Você é vida!


Reencontro

Segui tuas pegadas até onde elas afundavam na areia fina da beira do rio. Depois elas sumiram por cima das pedras que afloravam nas suas margens. E, quando as reencontrei, eu já estava era caindo na cachoeira que tu vivias dizendo que era a coisa mais linda deste mundo, mas que seria nossa última perdição.


Êxtase

"Peste da minha vida!", gritou, pela última vez, no leito da morte, o moribundo atacado pela bubônica.


O cão no meio do redemunho

Na planície açoitada pelos vendavais, o eremita escuta, ao longe, o gemido dos castelos e das catedrais.


Tortura

No corredor escuro que dá para o quintal, ressoam gotas latejantes de um silêncio.


Vertigem

Só na beira do precipício é que o vazio nos preenche.


Fuga

- "Preciso de menos do que um sonho".


Voo

Acuado no terceiro andar daquela mansão ele olhou em volta tocou fogo em tudo e falou para si próprio: "Só preciso desta janela!".


O jagunço

Por trás da aroeira, com um rifle na mão, aguardava ela aparecer na curva da estrada, para cravar-lhe, no coração, uma bala de hortelã.


Viva Zapata!

Meu avô, que só aprendeu a ler aos dezessete anos, era um revolucionário à moda antiga. Admirador de Sandino, Zapata, Pancho Villa, Lampião e Che Guevara, costumava dizer, levantando a aba do chapéu de couro: "A pessoa que não lê um livro que recebeu de presente deve ir para o paredão. Para ser metralhada com as milhares de letras que compõem o livro que arrenegou. Pero sin perder la ternura".


Velório

- Cansei de dizer: "Compra a cinquentinha, Zé! É mais barata, mais econômica pra ir pro trabalho!" Teimoso, Deus me perdoe, só sossegou quando comprou o diabo do carro velho. Diz-que pra passear com a família. Se tivesse me ouvido, pelo menos a mulher e os filhos podiam taí, ó, vivos.


Sede

A saudade era tanta que ela todo dia torcia a camisa dele, para ver se ainda saía uma gotinha de suor.


Ressurreição

Ela o reconheceu ali mesmo, no beco escuro, no momento em que ele, segurando firme os seus pulsos, rasgava-lhe as entranhas. Era ele sim, o mesmo que, anos antes, durante a pregação da palavra do Senhor, bradava no meio da praça: "Morri, meus irmãos, morri! Aquele Miguel criminoso, o pecador que vocês conheceram, morreu, não existe mais!". Mesmo com as dores lancinantes da penetração forçada, ela balbuciou: "Miguel...?". Deixando cair sobre ela o corpo suado, ele respondeu, exausto: "Ressuscitei...".


Perdeu! (Novos tempos)

Durante muitos anos João Genésio foi o pistoleiro mais temido em todo aquele sertão. Apenas sua presença apavorava qualquer um. Até a polícia tinha medo dele. Só atirava na testa. Havia despachado, sem ajuda de ninguém, algumas dezenas de deputados, prefeitos, vereadores, fazendeiros, sindicalistas, corneadores e devedores. Nunca foi preso, tinha as costas largas. Morreu hoje de manhã, na porta de uma sorveteria, no centro da cidade. Um pivete de 13 anos ia passando de bicicleta e deu um tiro na testa dele, pra roubar-lhe o celular.


O vaqueiro manco e o touro enfeitiçado 

(Histórias de minha mãe)

Quando retornava da feira de Jaguarari para a Serra dos Morgado, meu tio foi surpreendido pelos gritos de alegria e destemor do vaqueiro manco afamado, que atravessou a estrada lá adiante perseguindo o touro marruá do coronel que o havia chamado para pegar o barbatão criado solto na caatinga porque nenhum vaqueiro dali jamais conseguira pegar o boi tido em toda a região como um bicho enfeitiçado. "Segura no rabo do boi, cabra macho do sertão!", gritou meu tio, jogando o chapéu de couro pra cima, bem alto. Meu tio chegou na Serra dos Morgado já na boquinha da noite e viu um magote de gente reunida na porta da primeira venda do povoado. E amarrado na pilastra do alpendre, o cavalo do vaqueiro manco afamado. "O cabra pegou o touro e já está comemorando a fama", pensou meu tio, e foi abrindo caminho entre o magote de gente, já querendo pedir uma talagada de pinga pra também comemorar a pegada do touro marruá, quando viu, estendido sobre a mesa de sinuca, o corpo do vaqueiro manco afamado. "Morreu de manhã, do coração, aqui mesmo onde está, quando dizia pra todo mundo que ainda hoje ia trazer pro coronel, de careta e cambão, o tal boi enfeitiçado", falou o dono do bar.


O jangadeiro

Durante horas lutou para evitar que o continente afundasse no oceano, até que largou o cabo e deixou que a jangada se projetasse à deriva no espaço sideral.


O leão

"O mundo todo rugindo em minha volta. E eu aqui, sozinho. Rugindo".


Tocaia

Por trás da moita de xique-xique, vi meu olhos faiscarem. Engatilhei a espingarda: era eu ou eu.


Conversa de botequim

- Eu queria mesmo era esquecer meu futuro.

- Ainda há tempo.


Estreia

Ela, depois, virou as costas e acocorou-se sobre uma bacia.


No Inferno

"Não solte blasfêmias", disse o Cão ao novo hóspede, que rezava.


Vida

O velho sábio surpreendeu a plateia: "Ainda quero mais tempo para continuar errando".


Fotografia noturna

Um traço de luz ondulante acompanha, na avenida às escuras, o carro desgovernado do meu bem.


O edifício

Jornalista:

Como você conseguiu escrever esta obra-prima sobre os dramas, as esperanças e a mesquinhez do ser humano?

Escritor:

Todos os dias eu percorria os vinte andares do meu prédio, revirando, como um cachorro vira-lata, o lixo depositado por cada morador na área de serviço. Inclusive o meu.


O filisteu

Ele só bebe vinhos caros, limpa a bunda primeiro com chuveirinho, e depois com papel finíssimo. E, para impressionar as visitas requintadas, mostra a elas a estante repleta de livros de capa-dura. Mas só conhece os mestres das artes e da literatura pelas reportagens exibidas na TV Globo.


O centauro

Erguia os braços para o Céu, enquanto galopava para o Inferno.


Epifania

Nós amanhecemos o dia!


O fosso

Existe um abismo, entre mim e eu.


O infeliz

A felicidade dele consistia em julgar-se feliz. Isto lhe bastava.


Combustão

Diante da casa destruída pelas chamas, onde jazia o corpo carbonizado da solteirona, o repórter perguntou ao comandante dos bombeiros:
- Qual a causa do incêndio?
Experimentado em combustões da alma, o comandante respondeu:
- O ardor da vítima.


Permanências

Vais ficar aí, deitada, no leito deste oceano, para ser coberta pelos sedimentos ao longo de milhares, milhões de anos. Até que eu te encontre de novo, intacta, como fóssil precioso, descoberto por acaso nas escavações de um cientista maluco e solitário.


Precipício

- Meu pai morreu de desastre de carro.
- O meu, de infarto.
- O meu, de AVC.
- O meu, de mergulho, sem escafandro, nas profundezas da alma de uma mulher.



Desforras

- Eu sou a tua culpa.
- Isto é para quem necessita dela.


Remorso

Foi flagrado pelo coveiro no momento exato em que trocava, no mausoléu, a foto dele com a finada pela foto dela sozinha. Pôde apenas balbuciar: "Ela precisa descansar em paz".


Rompimento

- Você morreu para mim.
- É! Eu me matei pra você!


Soneto

- Olha, amor, este poema ele escreveu pensando em mim.

- É louca?

- Foi, sim. Tenho certeza.

- Mas ele lhe chama de piranha!

- ... é, né?... Mas não é lindo?


Maçã

O Cão mora nos detalhes. Por isto ela me ofereceu um cafezinho. E eu ofereci um cigarro.


Amor sinestésico (nordestino)

Um cheiro.


Ciúme

- Diz-me com quem andas, e eu te direi quem eu queria ser.


Mancha

"Não, não lave. Senão a gente esquece".


Pecado

Meu Deus, tu nem sabes o que eu estou armando...


Família

O fio do novelo com que minha mãe tecia o meu casaquinho ia dar no paiol entupido de pólvora e dinamite. E o meu pai, no alpendre de casa, bebia cachaça, riscava fósforos, fumava charuto e brincava comigo de cavalinho.


Emboscada

Foi o nosso último e inesquecível encontro: tombamos, cada um para um lado, na curva da estrada.


Wanted

Eu só matei para isto: para ser procurado.


Farra 1

Entre uma dose e outra de cachaça, um lapso de lucidez.

Farra 2

Entre um lapso e outro de lucidez, uma dose de cachaça.


Sobre as loucuras incompreensíveis e assustadoras do Velho Testamento, o douto sacerdote respondeu, com a sabedoria de um Chicó: "Não sei, só sei que foi assim".


Emancipação

Após o divórcio, sozinha, e na menopausa: "Enfim, sem regras!".


Sinfonia inaudível

Dois cavalos pastam no terreno baldio ao lado do meu condomínio. Sob o sol. Dois cavalos pastam.                                                                                                     


Claro-escuro

O carroceiro me disse, virando uma pinga de umburana ao pé do balcão, no cabaré de ponta de rua: "Eu quero é as sombras, porque elas me deixam deslumbrado diante da luz. Como num quadro de Rembrandt, tá ligado?".


Fim da vida

Ela me surpreendeu, mulher de mais de sessenta anos, ao anunciar seu mais novo, talvez último, projeto de vida: ler Ulisses, Os Sertões, Grande Sertão - Veredas, A Montanha Mágica, A Divina Comédia, Os Irmãos Karamazov, e Assim Falou Zaratustra. "Eu não quero ir para o Inferno, e nem pro Céu", ela me disse. "Só quero saber". E me pediu segredo. 


Desilusão de vampiro

"Eu jurei que te amava. Não precisavas ter me servido aquela sopa de alho, ao raiar do dia". 


Sabedoria de vampiro

"Pecado mesmo é o derramamento de sangue".


Saudade

"O que diabo vou fazer com esta desgraça?". Perguntava, em desespero, o brutamontes, segurando a saudade embaixo do braço, como uma cabeça decepada. 


Mágica

No meio da praça, o velho mágico o escolheu, no meio da multidão, colocou-o dentro da cartola, sacolejou-o bem, transformou-o em pessoa, e depois o lançou fora, virado num rato, para alívio da plateia.


Fome

A saudade era tanta que ele todo dia esfregava a própria pele, para ver se ainda sentia o perfume dela.


Fim de espetáculo

Diante da plateia muda, escuto, na última fila, dentro de alguém, os aplausos silenciosos do meu coração.


Zelimeiriana

Rejeitado pela aristocracia literária, o velho cordelista desabafou: "Não faço parte desse Olimpo porque sou o Cão!". 


O vira-lata

Só não derrubo a porra deste tonel pra não mostrar que sou, infelizmente, um vira-lata. Senão, vocês iam ver o tanto de merda que eu ia espalhar por este chão.


Evolucionismo

É o chimpanzé que crio em casa quem me ensina a usar a internet.


Esfinge (o troco)

Quebrou o nariz ao enfrentar nosso mistério.


Desistirmos?


Existirmos, a que será que se destina?

pois quando tu me deste a rosa pequenina

vi que tudo desandou...


Esquecimento

Abraçaste-me e me beijaste
inadvertidamente
como se fosse
ocasionalmente
para sempre.


Despojos

"Só as armas!", gritava o comandante da guerrilha, para os companheiros que recolhiam os despojos dos soldados mortos do exército invasor. "Só as armas! Só as armas!". Os guerrilheiros só recolhiam as armas, mas pisavam e cuspiam sobre os olhos bem abertos, e sobre a boca sorridente, dos soldados mortos do exército invasor.


Transmigração de alma

O perito afirmou que a bala que transfixou o cérebro do homem que se matou levou consigo a sua alma e foi alojar-se na cabeça de um transeunte que passava casualmente pelo local e que, antes de morrer, ainda conseguiu revelar o motivo do suicídio: "Matei-me porque eu era muito pouco para minha alma".


Cio

O relincho veio de dentro da capelinha abandonada.


Cavalos

Três cavalos fugindo pela estrada, nus, a galope.


Valsinha

Dois cavalos e quatro éguas rodopiam à luz do luar.


Brincadeira de cabra-cego

Taparam-me os olhos por detrás e me perguntaram: "Adivinhe quem é?". Passeei as mãos, sorrindo, por trás da cabeça, por trás do meu corpo, e não toquei em nada. Tornaram a me perguntar: "Adivinhe quem é". Procurei, já assustado, as mãos que me vendavam os olhos, e não toquei em nada. "Adivinhe quem é", tornaram a me perguntar, e reconheci a minha própria voz. Dei-me por vencido. "Não sei". "Sou eu", disse a minha própria voz. "Eu quem?", perguntei. Não houve resposta. Abri os olhos e me deparei com um espelho. Nele não havia ninguém. 


Serenata

Lembra daquele violão mal tocado, depois da meia-noite, embaixo do bambuzal, com uma garrafa de Serra Grande, e nossas vozes desafinadas? Porque aquilo não era um show! Era só um violão mal tocado, uma garrafa de Serra Grande, e nossas vozes desafinadas, embaixo do bambuzal.


Alegria

Passou hoje, ao meio-dia, na porta da minha casa, um palhaço cabisbaixo, que voltava da rua, e ouvia numa caixa de som, pendurada no pescoço, uma música de Waldick Soriano.


Desprendimento

- O que admiro em você é este seu gesto tresloucado de saltar do carro em movimento, sair atirando às cegas para todos os lados, e cair logo depois, já sem vida, com o corpo todo cravejado de balas.
- Eu também...


Dividendos

Minha avó era uma mulher tão solitária e angustiada que a única manifestação de independência que ela tinha era dizer para o marido bruto, livre e cachaceiro: "Vá à meeeerda!". Aí os dois explodiam numa gargalhada só.


Sedução

A aranha tecendo a teia.


Opróbrio

- "Eu te amo tanto que só te peço que me deixes em paz".


Haikai

O bom do texto rápido, na ficção, é a revelação de que a verdade pode ter perna curta.


Best-Seller de autoajuda

"Feliz? Nem entre os pássaros!...(outro dia vi um beija-flor disputando com um besouro a flor de um maracujá)".


Inapelável

O bêbado falou para a companheira de copo, de amarguras e desesperanças: "Eu te amo, peste, nem que seja entre aspas...".


Maniqueísmo

"Louvado seja Deus", disse o Demônio.


Massacre de Angicos

"Eu te amo, peste!". Foi quando estralou o tiroteio, e perdemos a cabeça.


Materialismo dialético

Depois que o coronel substituiu as armas pelo dinheiro, o jagunço compreendeu que não havia mais condições objetivas de receber o amor de Rosinha. 


Memórias Póstumas de um Herói

Foi tão rápido que quando eu vi já estava morto.


Veias abertas

Meu avô ajudou a desbaratar a Intentona Comunista no Recife e em Natal; combateu Corisco, Lampião e a Coluna Prestes, numa volante comandada por um major da Guarda Nacional; destacou-se como pracinha na Segunda Grande Guerra, sob o comando de um coronel que viria a participar do golpe de 1964; foi um dos que cercaram e degolaram o negro Osvaldão, nas selvas do Araguaia. Morreu pobre, de doença de chagas, com o peito estufado de medalhas, sentindo-se um herói nacional.


Independência

Meu avô batia o chapéu de couro empoeirado na cancela do curral e dizia: "Chefe, só se for de bandidos. Que é pra ter opinião".


Velho teen

Esbarrei num velho embriagado, na porta de um cabaré, e ele esbravejou: "Ah! desgraça de adolescência, que parece não ter fim! Com suas infinitas inquietações! Suas eternas perplexidades!".


Eficiência


Não sai do foco.

Nunca sairá do foco.

Nunca verá além do foco.

Morrerá no foco.

Outrem entrará no foco.


Anacronismo 2

"- Você está lendo o quê?"


Assombração

Não teve coragem de ir em frente, nem de voltar. No corredor, lá estava ela, a assombração. Acocorou-se rente à parede, e acendeu um cigarro. E assim ficou, como um índio, sentindo-se bem.


Aurora

E agora? que o dia está raiando... os passarinhos estão cantando...


A formiguinha

A formiguinha saiu da fileira que cortava a roseira do quintal da minha avó. E foi atacar, sozinha, lá na beira do caminho, uma plantinha esmirrada que nenhuma formiga queria atacar, alegando ela, a formiguinha, em alto e bom som, que "preciso de um estado alterado de consciência pra poder me alimentar". E foi assim, cortando as folhas da plantinha esmirrada da beira do caminho, que a formiguinha inventou essa musiquinha: "Rosas...rosas ... rosas... Rosas formosas são rosas de mim... Rosas a me confundir... Rosas a te confundir...".


Paradigma

Saudade do meu avô: "Aproveita, peste! A comida é ruim, mas engorda".


Contemporaneidade

(histórias de minha mãe)

Não tinha rádio, nem tv, nem internet, nem uatizápi, mas todo mundo sabia a resposta quando Lampião invadiu a casa de farinha lá da Serra dos Morgado, bateu o cabo do fuzil no chão, tirou o chapéu de couro estrelado, passou a mão na cabeleira engomada, ajeitou no pescoço o lenço encarnado, e perguntou praquela gente assustada: "Vosmecês sabem com quem tão falando?".


Semântica

O velho levantou a aba do chapéu de couro e, olhando para as nuvens escuras que se acumulavam por trás da serra, perguntou: "Aquilo pracolá é chuva, ou é só boniteza?".


Borboletagem

Da varanda de meu apartamento, assisti ao momento em que duas borboletas amarelas levantaram voo. Subiram, subiram, sempre juntas, borboletando ao sol. Aí vieram dois pardais. E as borboletas sumiram.


Juro

Não tenho medo de agiotagem. Quer ver? Empreste-me seu coração...


Barraqueira

Expulsou, aos berros e aos prantos, o inquilino trapaceiro que não pagava o aluguel do seu coração.


Execução

Eu fumava no alpendre da casa, e os faróis encadearam meus olhos. Mas deu pra ver ela saindo do carro, correndo em minha direção, gritando "socorro": nua, com os braços abertos. Linda! Linda! Ouvi o tiro, e antes dela cair nos meus braços, senti a pancada na testa. E morri.


Cavalo-de-pau

Cansado daquele vidinha, e doido pra se aposentar, o motorista do senador revelou para o patrão: "O senhor me desculpe, mas comi muito sua mulher. E a senhora sua mãe também".


Amor líquido

Abandonar-te-me-ei.


Expulsão

Pois pegue, vá! E saia logo daqui! Leve tudo, leve também a porra da desilusão! Mas não toque neste farelo de esperança que está no chão.


Contradança (ou Contratempo)

Não deu tempo, amor, para dançarmos o Bolero de Ravel.


Conversa de carroceiros

- Só esta burra me entende.

- Se engane não! Ela é fútil...

- ... Mas não é vulgar...


Lampião, para Maria Bonita:

"Tu não sabes quanto ódio me custa este nosso amor, peste!"


Faca de sete gumes

"Dane-se o mundo, estando eu com um bom livro para ler".


Família (Trauma de adolescente)

"Calma, somos do mesmo sangue...", choramingou a muriçocazinha, encurralada no espelho do sanitário e olhando assustada para mim, seu padrasto, depois que matei a mãe dela, no teto da cozinha, com uma toalhada só.


Meus avós

Ele, sentado em um banquinho de couro cru, os cotovelos apoiados nos joelhos, cruzando as mãos grossas e calejadas; ela, deitada em uma cadeira de balanço, as pernas varicosas estiradas, a cabeça descansando em um braço. Os dois contemplando a colina em frente, a caatinga inóspita, cravejada de facheiros e mandacarus. Era assim que os dois conversavam, e se amavam. Em silêncio.


Ah! Inferno que tem Cão!

- As pequenas mentiras é que nos levam pro Inferno. As grandes nos transformam em demônios.

- E quem vai pro Céu, vô?
- Só aqueles que acreditam piamente na própria mentira.


Miopia

Gosto de beber na bodega do Tonho porque ele é míope, e sempre bota cachaça a mais no meu copo. E não vê meus olhos.


Musa inspiradora

Finalmente seu livro, escrito com tanta paixão, foi lançado... ao fogo. Ele mergulhou nas labaredas para resgatá-lo. Ela gritou, apavorada: "Sai daí, maluco! Quer se matar por causa da porra de um livro!" E ele, já tomado pelas chamas, jogou o livro de volta, berrando para ela: "Você está aí dentro, amor!".


Conversa de doidos

- Você está lendo o quê?!

- Eu?! Eu tô é escrevendo!!!


Pégaso

Ao alçar voo, foi sustentado por um vazio enorme.


Iluminária

O facho de luz só se torna visível ao iluminar as partículas que estão no ar.


Autoconhecimento

"Eu tenho que me engolir."


As andorinhas voltaram

Eu era criança. Nunca vi coisa mais linda: minha mãe retirando a mala do bagageiro e cantando baixinho, de forma casual, pra só ela mesmo ouvir: "As andorinhas voltaram, e eu também voltei...".


Celular

- Amor...

- Alô?

- Não, amor... Sou eu, aqui, ao teu lado...


Cerco

Apontou a arma contra a cabeça da refém e gritou para os policiais que o cercavam: "Quero o direito de me matar, quando não precisar mais dela nem de mim mesmo!".


Chantagem

O Cão existe! Deus não ia nos ameaçar em vão.


Confissão sem hóstia

- Padre, eu matarei!


Confissão

Antes de estrangular a mulher que o suportou durante vinte anos, o bêbado disse a ela: "Eu te amo, peste, mas acredite em mim: eu fui uma mentira na sua vida".


Tarde

Eu só percebi que aquela minha tia maluca e solteirona tinha alguma coisa na cabeça quando ela engoliu, no seco, um sonrisal inteiro, e deixou um bilhete em cima da mesa: "Eu quero é efervescer!".


Cheiro

Ai que saudade de fungar no teu pescoço, peste, o perfume do pecado.


Teoria da relatividade

Parece mentira, mas em algum ponto do mundo você existe, você não existe, você teima em (não) existir.


As doidinhas

Maria Perpétua, 32 anos, visitava a irmã, e brincava na sala do apartamento com a sobrinha Bia, de cinco aninhos.

- Este tapete é um rio, Bia. Não pisa nele não, que ele é fundo.

Bia, sapeca, botava o pezinho no tapete, mas tirava-o logo, fingindo espanto.

- Não pisa não, Bia, que tem piranha.

Bia botava o pezinho, mas logo o tirava, soltando um gritinho de pavor.

- Não pisa não, Bia, que tem tubarão.

Bia colocava de novo o pezinho, mas logo o tirava, botando as mãos no rosto e gritando: "Ui!".

- Não pisa, Bia, que tem jacaré.

Bia botava o pezinho, tirava-o logo, e saia sapateando: "Ui! Ui!".

Maria Perpétua se despediu da irmã, deu um beijo na Bia e foi embora.

- Mãe, tia Perpétua é uma doidinha.

- Por que, minha filha?

- Ela pensa que este tapete é um rio.


Ternura e Angelita

Depois que pai morreu, meu irmão mais velho alugou por um fim de semana a chácara onde eu costumava passar as férias brincando o tempo todo com meu cavalinho chamado Ternura. Alugou para um pessoal que veio da capital dizendo que iam filmar umas cenas para uma novela de televisão. Tinha uma mulher linda, uma loira cheirosa e grandona chamada Brigite. Ela foi muito carinhosa comigo, me botava no colo, me beijava no rosto, penteava meu cabelo, e dizia que eu podia chamá-la por seu nome verdadeiro, Angelita. Brigite também foi muito carinhosa com meu cavalinho Ternura, alisava a crina, o rabo e a barriga dele o tempo todo. Ninguém pôde ficar na chácara para assistir às filmagens, nem mesmo o caseiro e a mulher dele. Depois das filmagens Brigite foi embora sem se despedir de mim. Durante muito tempo eu e minha mãe acompanhamos todas as novelas, esperando ver as cenas feitas em nossa chácara, mas elas nunca apareceram, nem nunca vimos Brigite na televisão. Muito tempo depois eu vi as imagens, mas não falei nada pra minha mãe. Achei por acaso um DVD que meu irmão escondia em cima do guarda-roupa. E vomitei com o que vi. Eu nem sei como conseguiram botar o cavalinho Ternura pra fazer aquelas coisas todas com a minha Angelita.


Desencanto de Natal

Meu pai mentiu para mim. Vivia dizendo que Papai Noel não existe. Pois ele apareceu lá em casa, na hora da ceia com meus avós, meus tios, meus irmãos e meus priminhos. Entrou na sala com um revólver de verdade, tomou os presentes de todo mundo, inclusive o meu smartphone, pegou o peru que estava na mesa, botou tudo dentro do saco, e saiu fazendo ho-ho-ho.


Paul Klee (ready made)

Aqui, do alto de meu apartamento, eu contemplo a pavimentação a paralelepípedos do meu condomínio. De perto, um bocado de pedras, cuspidas e cagadas pelos pombos, pelos pardais, pelos gatos, pelo cães, e pelos escarros meus e dos vizinhos. De longe, de onde estou, é um maravilhoso mosaico de Paul Klee.


Breve

Foi só depois de ajustar a corda no pescoço e certificar-se de que estava bem amarrada na viga-mestra do telhado da casa que ele chutou o banquinho sobre o qual havia ficado em pé e deixou que seu corpo flutuasse na sala como uma daquelas pipas que costumava empinar no campinho de futebol antes que seu pai assassinasse sua mãe com golpes de um machado enferrujado e depois se matasse enforcado na mangueira do quintal de onde ele havia tirado minutos antes a última fruta que haveria de comer em sua curta existência de catorze anos incompletos.


Perdão

"Agora se arretire!", disse minha mãe, no velório do meu pai, olhando firme, mas complacente, para a cadeira vazia ao lado do caixão.


Notícia

- Alô!
- Alô, jornalismo.
- É do jornalismo?
- Sim.
- É porque eu acabei de matar minha mulher. Manda uma equipe aqui.
- ... Onde... o que foi? ... onde fica?
- É isto, acabei de matar minha mulher, manda uma equipe aí.
- Alô, onde fica? Qual o endereço?
- É isto! É isto! Avisa à polícia aí.
- Alô, quem tá falando? Me dá o endereço...
- É isto! É isto! Avisa a polícia aí! E chama o Samu também!
- Alô! Alô! Alô!
- ...


Inversão

Quando enfim pôde voltar, desta vez para ficar, o umbuzeiro já tinha morrido, o açude havia secado, e as arribaçãs mudaram de rumo para pernoitar.


O espantalho

O velho agricultor já havia tentado de tudo na vida. Perdeu as contas das lavouras que procurou salvar, trabalhando duro na roça, batalhando sozinho contra as secas, contra as enchentes, contra as pragas de todas as espécies. E contra os corvos. Só no fim (ou no auge) da vida ele admitiu: "Tragam-me, por favor, a merda deste espantalho. Afinal de contas, preciso morrer feliz, convivendo com esta mentira!".


Coragem (histórias de minha mãe)

Foi meu avô, conhecido como João da Mata, que selou o cavalo de Lampião, quando ele pernoitou, com a sua cabroeira, lá na Serra dos Morgado. Lampião apertou a mão do meu avô e disse: "Parabéns, caba véio, vosmecê é um dos poucos homens que ficam diante do Capitão Virgulino sem ficar amarelo". Aí rumou pra Brejão das Caatingas, onde matou quatro soldados. Depois devolveu os cavalos, que pertenciam a Zeca Mendonça, lá de Itumirim, compadre do meu avô. 


Coragem

Meu avô era um perseguidor de Lampião. E eu perguntava a ele: "O senhor tinha medo?". E ele respondia: "Medo eu tinha. Mas medo não é pra se acovardar".


Uma dose de tequila

(Fragmento de uma tragédia 1)

Virou o copo de tequila em um gole só. Enfiou a arma na cintura e prometeu: "Eu volto". Ela o viu afastar-se na semi-escuridão da rua. Colocou uma dose no copo, sentou-se no sofá, e ficou bebendo a tequila, lentamente, na penumbra da sala de estar.


Uma xícara de café

(Fragmento de uma tragédia 2)

- Acalme-se, tome um pouco de café - ela disse, colocando na mesa uma xícara fumegante.

Ele soprou um pouco, e bebeu um gole. Suas mãos tremiam.

- Este é dos melhores. Veio da Colômbia - ela disse.

Ele bebeu outro gole. Olhou para ela, com os olhos vermelhos:

- E agora, o que faço? O corpo está lá...

- Deixe estar. Apenas beba o café. É dos melhores. Veio da Colômbia. Mas não assopre. Beba-o quente, fervendo.

Ele tomou outro gole, e mais outro. E suas mãos pararam de tremer.

- E o corpo? - perguntou.

- Sossegue. Deixe estar, deixe estar. Tome outro gole.


Decepção

Porra! Ela não sabe o que é o Abismo...


Declaração de amor

No buquê de flores havia um bilhetinho: "Viver é muito perigoso".


Assassínio

Correu na província o boato de que meu tio havia degolado um sujeito com um golpe de foice no pescoço. Pura mentira. Ele me contou como foi: "Apenas ajudei o cabra a desengolir sua própria sina".


Descoberta

"Descobri coincidências incríveis", disse o ex-seminarista que passou a frequentar um brega.


Desencanto

Encontrei-a bem cedo na fila do INSS. Fiquei fascinado por suas olheiras, sua palidez. Mas logo o encanto se desfez, quando ela começou a falar ao celular.


Apatia

Apatia (com cultura)
- Pensava que ia me conquistar com aquele papo chato sobre artes.
- E aí?
- Aí? Ai, ai...

Apatia (sem cultura)
- Pensava que ia me conquistar com aquele papo chato, sobre artes.
- E aí?
- Aí? Ai, ai...

Apatia (sem nada)
- Pensava que ia me conquistar, com aquele papo chato sobre artes.
- E aí?
- Aí? Ai, ai...


Mistério

Desculpe ter lhe transformado em personagem de meus contos de terror. É que não resisti àquele uivo que você soltou quando lhe beijei na porta do cemitério, lembra?


Bala perdida

Foi um momento fantástico na minha vida. Emparelhamos os carros no sinal vermelho. Aí aumentei o som, um baião maravilhoso de Dominguinhos. Ela começou a dançar, ao volante, sorrindo e olhando para mim. Vi logo que a amaria. Mas veio uma bala perdida.


Última vez

Avistei-a no trânsito, eu dentro do carro, ela passando, bela e triste, na faixa de pedestre. Buzinei, gritei, acenei com a mão. O olhar dela bateu e voltou, opaco, no vidro escuro do meu carro.


Laura

Laura, meu amor, estive hoje de manhã em sua casa, buzinei, bati palmas, toquei a campainha, chutei o portão, joguei uma lata na varanda, arremessei uma pedra na janela, enfiei uma vara por entre as grades e fiquei forçando a maçaneta da porta. Gritei abra, sua vaca! E nada. E nada. Laura.


Te amo

Eu te amo, mulher linda! Até porque conheço bem tua feiúra.


Crueldade

A mulher que ele amava tanto, desejava tanto, e que casou com o seu melhor amigo, ainda teve a desfaçatez de lhe dizer, toda sorridente na maternidade, ao lado do maridão feliz, que não havia levado nenhum ponto no períneo.


Corno

Ele pisou no pescoço da mulher, cuspiu no rosto dela, guardou o revólver na cintura e disse: "A tua sorte é que eu te amo".


Adultério

"Eu vi o vulto passando no corredor!"       


A terceira margem

"E nós, agora, peste?!", perguntou a si mesmo, olhando para a outra margem, deserta, lá na beira do abismo.


Adeus

Só agora começo a sentir o cheiro da morte. Mas não vem do meu próprio cadáver, que começa a entrar em estado de putrefação. Vem do ramalhete de flores que ela jogou, por detrás do povo, em cima do meu caixão.


A torre

O carroceiro bêbado saiu à porta do cabaré de ponta de rua e me disse, dando a última tragada no cigarro de palha: "Vê aquela luz vermelha daquela torre lá adiante? Não ilumina porra nenhuma! Está ali só pra dizer que ela existe".


A mensagem

A rolinha fogo-pagô ficou me olhando, em cima de um arbusto que cresce em frente ao meu apartamento. Me olhou, me olhou, e aí levantou voo. Acompanhei o trajeto. Voou, voou, e pousou em um cabo de telefonia que fica a uns duzentos metros do meu condomínio. Ficou lá por uns instantes, depois fez o trajeto de volta. Voou, voou, e pousou de novo no arbusto que cresce em frente ao meu apartamento. E ficou me olhando, a rolinha fogo-pagô. Acho que recebeu alguma mensagem para mim, no cabo de telefonia, e queria me dizer. Mas, como não sabia falar, apenas ficou sabendo. E o telefone nunca tocou.


Os anjinhos

No fétido sanitário unissex do cabaré de ponta de rua, acima da descarga da privada entupida de merda até o meio, brilhava a desgastada reprodução de uma pintura de dois anjinhos barrocos se beijando. E logo abaixo, escrita a lápis na parede, a frase: Vivi, eu te amo.


Lamento

A prostituta velha jogou a toalha encardida sobre o colchão puído: "Acabou-se, a vida virou mesmo uma putaria só".


Choro de puta

A prostituta velha foi para o meio da rua, abriu os braços e fez calar todo o quarteirão, cantando com sua voz potente e melodiosa: "Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de meu amor". E o velho carroceiro, que bebia comigo ao pé do balcão, cuspiu no chão, virou o resto de pinga e falou: "Entende agora o que é sentimento?".


Platonismo

Eita nós! Em alguma parte do mundo estarei (estarás) pulsando!


Amor

E na hora do tiroteio, Corisco gritava pra Dadá: "Corre pra trás da aroeira, peste!".


Suicídio

Esgotada a fonte de inspiração, o ficcionista colocou o caderninho embaixo do braço, subiu ao último andar do edifício, e o jogou lá de cima.


Um cigarro que caiu do céu

"Eu ia passando embaixo do prédio, seu doutor, e recebi aquela ponta de cigarro, que caiu bem dentro da minha camisa, e queimou minha barriga. Aí subi pra tirar satisfação. O velho me disse que eu tivesse tento, olhasse por onde ando, tomasse cuidado com os passos que dou na vida. Aí eu tum- tum- tum! Mostrei pra ele, seu doutor, que é, às vezes, jogando um cigarro pela janela, que se muda o destino de um homem".


Briga de trânsito

Tivemos uma discussão no trânsito por causa de uma bobagem, ele me encheu de desaforo, eu disse pra ele "amigo, amanhã de manhã você vai estar arrependido de tudo que você me disse", achando eu que estava dando a ele uma lição de moral, mas ele achou que era uma ameaça, puxou a arma e me matou.


Tragédia urbana

Um boi se jogou do décimo andar do edifício, depois de levar chifre de uma vaca do apto 403.


Conversa

- Ela mereceu o castigo.

- Sim. Vai pagar pelo preconceito.

- As pessoas perderam o respeito.

- ... pelos outros...

- É.

- Ninguém escolhe a cor que tem.

- Pois é.

- Ninguém é preto porque quer.

- ... nem pobre, nem feio, nem veado...


Superstição

Deus nos salve de nós.


Velório de Pedro Páramo

Eis-me muerto, enfim, com a vantagem de que, a mim, pareço-me - e de fato sou - mais vivo do que nunca fui. Bebo, pues, tequila, hasta siempre, na celebración de la vida, y de mi própia muerte.


O notívago

Conheci, numa noite de farra em um cabaré, um velhinho notívago, que sempre trocou o dia pela noite. Ele gostava de declamar poesia para as putas. E me falou sobre nossa sombra: "Sabe o que é a sombra? É nossa alma, que, durante o dia, enquanto a gente faz misérias pra ganhar dinheiro, fica rastejando pelo chão". Aí eu perguntei, apontando para a sombra dele projetada na parede: "E agora?". Ele respondeu: "Agora ela simplesmente mostra que eu estou aqui".


Rapel

Somos seres cerebrais. Mas precisamos aprender com os loucos a fazer rapel entre os precipícios de nossos neurônios.


Livre!

Vocês conhecem Marc Chagall, aquele pintor maluco que fazia cabras, jumentos e violinistas flutuarem no espaço? E lançava aos céus casais de noivos em pleno voo nupcial? E pintava de verde ou de azul a cara das pessoas? Pois este doido foi reprovado no psicoteste para tirar carteira de habilitação. Um a menos para poluir o meio ambiente.


O gato preto

Um gato preto me disse: "Este povo não sabe quem eu sou. Acham que eu dou azar. Não sabem, ou não querem saber, que eu sou a alma deles, querendo ser livre". Eu perguntei: "E ser livre, dá azar?". O gato preto se enroscou em meus pés, olhou cinicamente para mim, e, como todo gato, ronronou.


Mito da caverna

Na parede do meu quarto desenham-se as formas das grades de uma cadeia. São as sombras da sacada do apartamento, projetadas por uma grande placa de neon, que brilha a noite toda em frente ao edifício.


A dor de Gaia

Escavou o chão à procura de água, e o que saiu foi um jato de aguardente. Compreendeu, então, que a Terra também tem o direito de afogar suas mágoas.


A bolha

Após o derradeiro suspiro, ele ainda flutuou acima do próprio corpo, como uma bolha de sabão, e se viu inerte na rede do alpendre da casa, sozinho, com um chazinho de erva-doce bem ao alcance da mão. Mas foi coisa assim de um milionésimo de segundo. Chegou também a se reconhecer nesta bolha, que recebia, na sua quase imaterial superfície líquida, a luz do sol, absorvendo e irradiando todas as cores do espectro luminoso. Mas logo depois, como bolha que era, desfez-se num sopro do vento. E todas as moléculas, ou quaisquer que fossem as partículas mais ínfimas e mais íntimas que o constituíam, pulverizaram-se no ar. Ainda chegou a se ver, por um milionésimo de segundo, como o próprio Universo. Aí puf!, deixou de ser.


No limbo

Joquinha foi alfabetizado junto comigo, em casa, por minha mãe. Era filho da empregada, que morava com meus pais desde antes de nascermos. Crescemos juntos, e cedo ele demonstrou a paixão pelas artes. Puxou ao pai, um velho seresteiro de cabaré, que morreu de cirrose hepática. Eu herdei o pragmatismo do meu pai, empreiteiro da construção civil. Adultos, seguimos caminhos diferentes. Fui ser advogado. Ele, publicitário. Ajustei-me bem à profissão, defendendo a causa de grandes incorporadores imobiliários. Joquinha também se deu bem, na criação de campanhas milionárias para esses mesmos incorporadores imobiliários. Eu vivia feliz, pelo menos até onde podia disto me convencer. Casei-me e constituí uma família. Joquinha, não. Renegava suas próprias criações, que não incorporava a cultura que acumulara. "Não tem eficácia", dizia, sobre os conhecimentos que adquirira, e a que chamava de "arquivo morto". Morava sozinho, num apartamento repleto de livros e reproduções de pinturas famosas, onde todas as noites se embriagava de vinho ou de uísque, ouvindo jazz, MPB e música clássica. Nos fins de semana, enfiava-se nos cabarés de ponta de rua, para ouvir as músicas que eram adoradas por seu pai. E para tomar cachaça ao lado de putas, vagabundos e trabalhadores de baixa qualificação. Mas não se misturava com eles, que se mantinham à distância, e o tratavam, cerimoniosamente, de "doutor" ou "professor". Não conseguia, não queria beber uísque com os colegas e com os clientes, que o consideravam um sonhador. Um dia me levaram a um desses cabarés, para resgatá-lo de um desmaio alcóolico. Encontrei-o debruçado sobre a mesa. Despertou ao ouvir minha voz. E conseguiu balbuciar, antes de ter outro desmaio: "Vivo no limbo, meu irmão. Vivo no limbo".


Bússola

Estrela Dalva, que não me guia.

Eu, feito um besta,

achava que te seguia.


Calor

"Dentro do mosquiteiro, amor, só a gente mistura o sangue".


O surdo

"Erga a voz, não me inclino para ouvir cochichos".


Cansaço

Hoje eu não tenho nada na vida. Mas meus filhos me respeitam. Passei minha vida inteira perseguindo Lampião, que matou meu pai, minha mãe e meus irmãos. Hoje, o que sou, agradeço a Lampião.


Caça

"Alcançar-te-me-ei, peste!", gritou o selvagem, lançando contra a presa o bumerangue virtual.


Luar

Lá adiante a luz vermelha de uma torre.


Liberdade

E quando não havia mais ninguém à sua volta, o cavalo deitou na relva, para dormir.


Lua cheia

Os cães ladravam em todo o quarteirão: era o Lobisomem roubando flores nos canteiros da igrejinha.


Linha de montagem

Hoje chupei uma balinha de hortelã que, tenho quase certeza, foi embrulhada por ela.


Luz e Sombra

Haveremos de nos encontrar, peste, no Purgatório!... Eu assim, peste, vestido de Sombras. E tu assim, peste, vestida de Sol.


Apocalipse

Em meio ao bombardeio que matava velhos e crianças no templo religioso, a mulher erguia um bebê ensanguentado e berrava "Glória!"! E eu, ileso, ajoelhado ao pé dos escombros do altar, me perguntava: "Meu Deus, serás Vós tão Besta assim, ao ponto de me poupar?!".


Arrivismo

Compreendi o Demônio quando ele me disse, na Encruzilhada: "Eu não existiria, porra, e nada disto estaria acontecendo, se não houvesse esses teus santos". 


Sucessão

Ali está, pendurado na parede, com letras douradas, o certificado de honra ao mérito conferido ao meu pai pela empresa à qual, por anos a fio, ele entregou seu sangue para me ensinar a ser o próximo a ter na parede de minha casa um certificado de honra ao mérito com letras douradas conferido pela empresa à qual por anos a fio eu entregarei meu sangue para ensinar o meu filho a...


Afeto

Descobriu que sua anemia profunda devia-se à muriçoca criada embaixo da cama como bichinho de estimação.


Totó

Passei a admirar Totó quando o vi abandonar uma matilha de cães que perseguia, de forma submissa, uma cadela no cio. Ele atravessou a rua e veio em minha direção, com a cabeça baixa e balançando o rabo, como se sorrisse e estivesse dizendo: "Eu é que não faço parte desta cachorrada".

Revelação

Mensagem criptografada encontrada na tumba de um faraó: "Aidivoceissenaofôssemosnós!" Observe o ritmo retumbando na tumba: "Aidivoceissenaofôssemosnós!"


O gato

Preste atenção no gato: ele não é cachorro não.


Brincadeirinha

- Cadê meu anelzinho que estava aqui?

- O gato comeu.

- Cadê minha esperança que estava aqui?

- O homem comeu.

Feira de Santana, BA
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