ROBERVAL PEREYR
O deus
O meu relógio de pulso é movido por um deus. É um deus que habita sob a pele do meu braço, na região do pulso esquerdo. Tem a forma de um círculo exatamente do tamanho do aro do meu relógio, que pulsa ao ritmo do seu coração. O coração do deus está conectado simultaneamente ao mecanismo do meu relógio e ao meu coração, de modo que às vezes, a depender do meu estado de espírito, do que esteja fazendo ou das imagens que esteja vivenciando, duras horas muito demoram, ou, ao contrário, não chegam a durar um só segundo no mostrador do meu relógio de pulso.
O deus, segundo me foi secretamente informado, está ainda conectado a muitos outros deuses, a estrelas longínquas e astros diversos, em pontos diversos do cosmos. O seu coração opera a um só tempo com inúmeros ritmos distintos, dos quais recebo impressões e frequências que desconheço e que se insinuam no meu coração, acoplam-se aos arquivos do meu cérebro, disseminando-se por todo o meu corpo e interferindo em tudo o que penso, imagino ou faço.
Se de repente esse deus morrese, ou mesmo me abandonasse por qualquer motivo, ou sem motivo aparente, o meu relógio daria horas certas, minutos previsibiíssimos, dias monótomos, bastando que, para isso, em lugar do ausente, o movesse, mecanicamente, uma pilha.
CENA MÍTICA
Lá se vão, celerados,
com seus séquitos atrozes,
dez demônios ferozes
e suas cem namoradas.
CANÇÃO E DÚVIDA
A vida afunda num barco.
De dentro dele me vejo à margem
e aceno:
adeus!
No beco da alma, um grito:
a amante recôndita? Deus?
A vida afunda num barco:
quem sou? quem és? quem sou eu?
SEGREDO
Caem no teu medo
um silêncio e um dedo.
Um silêncio longo
e um dedo magro.
Cruel este afago.
Cruel este afago.
DEGREDO
No templo assolado
havia um deus morto
e um mendigo calvo
colhia seus ossos.
Era um templo amorfo
era um deus amargo
e um cenário roto
e um mendigo calvo.