Aquela mulher

14/10/2017

Minha mãe era certamente a única pessoa na nossa cidadezinha que detestava aquela mulher, e me recriminava com dureza pelo hábito que tínhamos de ficar olhando pelo buraco da fechadura da casa onde ela vivia enclausurada desde antes de eu ter nascido. Os outros meninos que disputavam espaço diante da fechadura para tentar enxergar aquela mulher no meio da escuridão diziam a mim que eram até incentivados pelas próprias mães, que ficavam curiosas em saber o que ela fazia dentro daquela casa com as portas e janelas eternamente trancafiadas, sem nunca colocar pelo menos por um segundo a cara do lado de fora para ver a luz do sol ou o movimento da rua.

O que eu não entendia era porque minha mãe, embora detestasse tanto aquela mulher e procurasse a todo custo evitar que eu ficasse tentando enxergá-la pelo buraco da fechadura, era também a única na cidadezinha onde nós morávamos que todas as semanas colocava mantimentos para ela através de uma abertura providencialmente aberta na porta que dava acesso ao quintal.

Mas em casa minha mãe só falava sobre aquela mulher quando meu pai não estava por perto, mesmo assim se referindo a ela de forma bastante agressiva, dizendo que ela era a cruz de sua vida e que era um fardo que ela tinha que carregar nas costas pelo resto de sua existência, colocando todas as semanas aqueles mantimentos pelo buraco da porta do quintal, senão ela ia mesmo era morrer de fome, pois ninguém mais naquele lugar ia se dar a este trabalho de alimentá-la, e das vezes que eu falei sobre ela fui duramente repreendido por minha mãe, que dizia que não queria que ninguém falasse sobre aquela mulher na presença dela.

Quando eu colocava o olho na fechadura da porta da casa daquela mulher às vezes podia enxergar o seu vulto passando pelo corredor, vestida num camisolão, e só. Meus coleguinhas é que diziam que já a tinham visto completamente nua, e alguns inventavam até umas estórias cheias de obscenidades, mas a gente percebia logo que era tudo conversa inventada, que só corria mesmo na boca da meninada, porque os adultos não falavam nada sobre ela, pelo menos na presença de nós crianças. A única coisa que eu ouvi um adulto dizer sobre aquela mulher foi que ela era muito bonita quando era jovem, mas que teve o rosto desfigurado por água fervente, num episódio que até hoje nunca foi bem explicado. E que ela, apesar da carinha de anjo, era uma mulher muito danada e que tivera um romance com um homem que era casado.

Meu pai mesmo nunca falava nada a respeito daquela mulher, pois sabia muito bem que se falasse um tantinho assim sobre ela com certeza a casa toda viria abaixo. Me lembro perfeitamente da vez que meu pai achou de perguntar se não seria melhor minha mãe trocar alguma coisa na cesta de mantimentos que ela estava levando para a casa daquela mulher, dizendo que aquilo não era coisa que se desse a um ser humano, e minha mãe teve um ataque histérico e partiu para cima do meu pai com o dedo em riste gritando para toda a vizinhança ouvir: Você me respeite! Você me respeite!

Na nossa turma havia um menino chamado Rodrigo que era muito perverso, e foi quem ensinou a nós a brincadeira de capar-sapo, que consistia em colocar um sapo numa extremidade de uma tábua apoiada sobre um tijolo e depois saltar em cima da outra extremidade para que o sapo fosse lançado nas alturas e caísse mais adiante estourando a barriga e espalhando as tripas pelo chão. Pois foi este Rodrigo quem começou a planejar um jeito de botar aquela mulher para fora de casa, para que todo mundo finalmente pudesse ver a sua cara. E o plano dele era tocar fogo na casa daquela mulher, jogando sacos plásticos cheios de querosene no telhado e depois arremessando uma tocha incendiária feita com vassoura de palha.

Nunca soube se o plano foi executado, nem se outra pessoa passou a colocar mantimentos para aquela mulher, porque coincidiu que meu pai foi chamado para trabalhar numa cidade distante, que é esta onde estamos morando agora, e tivemos que fazer a mudança de última hora. Mas me lembro do momento em que a gente partiu, com meu pai dirigindo o caminhão que a empresa mandou para nós fazermos a mudança, e ele dando a volta pela praça para antes passar pela casa daquela mulher, e quando por ela ia passando parou um pouco o caminhão para olhar para a casa, e eu percebi que meu pai estava com os olhos cheios de lágrimas, e que minha mãe olhava para a frente, com os braços cruzados, o tempo todo calada e com o olhar pegando fogo. 


Marcondes Araujo

Feira de Santana, BA
marcondes.campos@yahoo.com.br
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