Elizabeth

14/10/2017

Elizabeth foi flagrada pelos soldados no momento exato em que passava um trote para o Corpo de Bombeiros, ligando do telefone público que havia em frente ao prédio onde trabalhava como empregada doméstica. A polícia já vinha rastreando as insistentes ligações que faziam há muitos dias para a sede do batalhão, avisando sobre incêndios e acidentes de trânsito que de fato não existiam. Por diversas vezes os bombeiros saíram às pressas para atender a apelos desesperados dando conta de motoristas e passageiros presos entre as ferragens de automóveis retorcidos, ou então de crianças e pessoas idosas encurraladas pelas chamas no interior de residências envolvidas pelo fogo. Chegando ao local indicado pelo informante anônimo, nada encontravam.

Por muitas e muitas vezes o comandante do Corpo de Bombeiros foi às rádios e à televisão, pedir às pessoas que não fizessem esta terrível brincadeira de mau-gosto, pois, conforme explicava, enquanto os soldados atendiam a um desses chamados mentirosos, podiam estar deixando de socorrer, naquele exato momento, vítimas reais de acidentes verdadeiros. E advertia: "Esta brincadeira é crime, e pode dar cadeia".

Elizabeth ouvia todos os programas de rádio enquanto lavava roupas, fazia a faxina da casa ou preparava o almoço da patroa, mas só prestava mesmo atenção nas músicas sertanejas, nas previsões astrológicas, nos recados de casais separados, e nos conselhos e orientações que os radialistas davam, com suas vozes bonitas, para pessoas como ela. "Pare de sonhar, menina bonita. Vá à luta, conquiste o seu amor", costumava dizer um deles, num programa de confidências escancaradas, para o qual ligavam dezenas de empregadas domésticas todos os dias, identificadas por nomes inventados na hora pelo locutor, como Governanta das Ilusões, Faxineira de Sonhos Desfeitos, Gata Borralheira Apaixonada e Verdadeira Rainha do Lar.

Mas, embora apreciasse este tipo de programa, Elizabeth nunca telefonou para nenhum deles, primeiro porque não podia usar o telefone da patroa, que vivia sempre no cadeado, segundo porque não tinha dinheiro para comprar cartões telefônicos, e terceiro porque não teria mesmo o que falar. As mulheres que telefonavam para os programas de rádio tinham sempre uma história bonita para contar, muitas delas haviam sido traídas pelo companheiro com a melhor amiga, outras haviam se apaixonado pelo companheiro da melhor amiga e não sabiam o que fazer, outras estavam mesmo namorando com o companheiro da melhor amiga, só não sabiam como dizer isto para ela. Enfim, eram histórias tristes, mas sempre bonitas, porque tinham paixão pelo meio, e ela acreditava que no fim das contas iria dar tudo certo com as pessoas, assim como acontecia nas novelas da televisão. Mas eram também histórias que nunca aconteceriam com ela, Elizabeth não se sentia à altura de experiências tão emocionantes como aquelas.

Mesmo porque não tinha nem mesmo a oportunidade de viver essas grandes paixões. Desde que viera morar na cidade, não conseguira firmar uma relação duradoura com ninguém. As poucas amizades que conquistara se desfizeram rapidamente, e ela no início não conseguia compreender o porquê, até que aos poucos foi se conscientizando do motivo daquela sua incapacidade em segurar uma amiga por muito tempo: não tinha um telefone celular. As colegas todas já tinham um. Compraram o aparelho com muito sacrifício, e gastavam muito dinheiro para mantê-los em funcionamento, mas o celular mudou a vida de todas elas. Pra começar, deixaram de ser empregadas fixas e se transformaram em diaristas. As madames ligavam para elas quando queriam fazer uma faxina na casa. E não lhes faltavam serviços. E ganhavam mais dinheiro. O dobro, às vezes o triplo, do que ganhavam como fixas. E conversavam entre elas, marcavam encontro com os namorados, telefonavam para os programas de rádio. Era muito importante ter um celular. Servia para o trabalho, para manter as amizades, para desabafar e arranjar namorado. Trabalho ela já tinha, com ele dava para matar a fome do filho que não tinha pai e morava com a avó numa cidadezinha do interior. Mas se tivesse um celular seria mais fácil. Sairia do emprego na casa da patroa, onde recebia aquele dinheirinho contado que não dava para quase nada, e passaria a trabalhar como diarista, ganhando muito mais. E faria amizades. Do jeito que estava, sem celular, fora esquecida pelas colegas. Antes, quando ninguém tinha celular, se reunia todo mundo, à noite, depois da novela, na porta do prédio, para falar mal das patroas e contar as novidades sobre os namorados. Agora não. Dificilmente via uma colega. Ninguém ligava para ela. Claro, não iam ligar para o telefone da patroa. Das vezes que isto aconteceu, a patroa disse que ela não existia. "Ô minha filha, aqui não tem nenhuma Elizabeth não". E ela ouvindo da cozinha. Deixaram de telefonar. Ela, por sua vez, não podia telefonar para as colegas. O aparelho ficava trancado. E ela não tinha dinheiro para comprar cartão. Terminava de fazer o serviço, assistia a novela e depois ia para a porta do prédio, ficar conversando com o porteiro, que só falava sobre Moisés, Sodoma e Gomorra, e as muralhas de Jericó. Sem a convivência com as colegas, não conseguia arranjar namorado.

O que salvava Elizabeth da solidão absoluta era o telefone gratuito do Corpo de Bombeiros. Bastava se encostar ao pé do orelhão e discar três números, e ela ouvia a voz de um homem atendendo do outro lado da linha, fardado. Ela adorava homens fardados. O pai do filho dela trabalhava como guarda-municipal na cidadezinha de onde viera. Ela se apaixonou por ele logo na primeira vez que o viu, com aquela farda azul, um cassetete na cintura. Pena que deu tudo errado. Assim que ela engravidou, ele caiu fora, e depois ela descobriu que ele já era casado. Nunca deu um centavo para o filho. Mas nem isto tirou dela a fascinação pelos homens de farda. O coração disparava quando ouvia a voz forte do outro lado da linha: "Quartel do Corpo de Bombeiros, pois não". E ela imaginava o tipo de homem que estaria ao telefone: alto, forte, moreno, o capacete de bombeiro na cabeça. No começo ela passou vários dias ligando só para ouvir a voz do homem. Era muito tímida, não conseguia falar. O homem dizia "Quartel do Corpo de Bombeiros, pois não", ela ficava em silêncio, depois o homem falava "alô, alô, alô", e desligava o telefone. Ela saía radiante, imaginando mil coisas sobre aquele homem fardado.

Aos poucos foi tomando coragem, e um dia resolveu se apresentar. Quando o homem atendeu, ela foi logo dizendo alô. O homem disse "pois não", e ela ainda ficou alguns instantes calada, mas respirou fundo e conseguiu falar: "Meu nome é Elizabeth". "Pois não, dona Elizabeth". Ela ficou calada. "Pois não, senhora". Ela calada. Aí o homem bateu o telefone. Ela foi insistindo, até que conseguiu aos poucos se soltar: "Meu nome é Elizabeth. Eu só queria falar com você". E ela percebeu que o homem sorria. "Pois não, Elisabeth", "É que eu gosto muito de homem de farda", "É?", "É...", "Por que então a gente não se conhece melhor, Elisabeth". Ela ficou muda. "Fale, Elizabeth". E ela muda. "Elizabeth?". Ela botou o telefone no gancho.

Mas aos poucos foi se acostumando. Quando telefonava já ia dizendo: "Sou eu, a Elizabeth". "E aí, Elizabeth!". "Tudo bem?", "Tudo bem, e você, minha flor?". "Eu tô bem, também". E ficava calada. Morria de inveja das colegas diaristas, que sabiam entabular uma boa conversa no telefone celular. Ela ficava só observando: as colegas riam, enrolavam o cabelo com o dedo, sapateavam, reviravam os olhos, botavam a mão na cintura e olhavam para cima, e Elizabeth tinha a certeza de que aquela conversa só podia ser com homem. Ela não. Parecia que se entalava. Só fazia sorrir, segurando fortemente o fone com as duas mãos, como se tivesse medo que ele caísse. E ficava dura, ereta, rígida como um pau. E o bombeiro falando do outro lado da linha: "E então, minha flor. Quando é que a gente se encontra pra se conhecer melhor? Hein?", "Não sei...", ela conseguia dizer. "Diga onde você mora que eu passo aí quando estiver de folga", "Não sei se posso dizer...", "Claro que pode. Fale, minha flor". Um dia o bombeiro se impacientou e deu um ultimato: "Ou você diz onde mora ou não atendo mais sua ligação. Não posso ficar conversando tanto tempo neste telefone". Ela deu o endereço e o bombeiro pediu que ela o esperasse na esquina tal hora, quando ia largar o plantão. Mas era apenas para que se vissem rapidamente, pois estava indo para casa, na carona de uns colegas. Combinariam então um encontro para depois. No horário marcado ela foi para a esquina, vestindo uma roupa que a patroa havia lhe dado no Natal do ano passado, e que não tinha tido ainda a oportunidade de usar. Meia hora depois apareceu uma viatura do Corpo de Bombeiros. O carro veio se aproximando lentamente, com três homens dentro. Ela não sabia qual dos três era o interlocutor do telefone, mas achou que era o que estava sentado no banco de trás, porque ele estava espichando o pescoço para a frente para observá-la melhor. O carro parou diante dela, o homem de trás espichando o pescoço. Os dois da frente começaram a dar risada. O homem de trás bateu no ombro do motorista e ela ouviu ele dizer: "Vambora, vambora!". O carro deu uma arrancada e um deles gritou: "Carcaça!". Ela escutou umas gargalhadas, e o carro partiu.

Elizabeth compreendeu perfeitamente que não tinha agradado, não era nenhuma idiota. Mas resolveu tirar a prova dos nove no dia seguinte, telefonando do orelhão para o Corpo de Bombeiros. "Alô, sou eu, Elizabeth". "Ô minha filha, você não perturbe o serviço não, que isto aqui é coisa de muita responsabilidade", respondeu a voz do homem que antes havia lhe chamado de "minha flor". E bateu o telefone.

Elizabeth passou uns dias sem saber o que fazer. Em casa a patroa triplicou as reclamações. Ela não passava a roupa direito, estava quebrando copos enquanto lavava a louça, botava sal de mais ou de menos na comida, esquecia recados que lhe incumbiam de transmitir, chegou até mesmo a voltar do supermercado sem fazer as compras porque perdera a lista que a patroa havia lhe entregue sob graves recomendações. "O que diabo está acontecendo com você, Elizabeth?", perguntava a patroa.

Que falta lhe fazia um celular. Precisava tanto conversar com alguém, desabafar com uma colega, abrir-se com o radialista que compreendia as empregadas, mas só havia mesmo o porteiro que lhe falava das muralhas de Jericó.

Decidiu, então, retomar os telefonemas do orelhão. Quando desceu do apartamento para fazer a ligação, não sabia exatamente o que ia dizer, mas sentia que falaria algo muito importante e verdadeiro. Discou os três números, segurou firme o aparelho com as duas mãos, ouviu a voz do bombeiro. Demorou alguns segundos para balbuciar: "Socorro, eu estou morrendo...". "Alô, quem fala?". "Socorro, eu estou morrendo...". "Quem fala, quem fala?". "Socorro, eu estou morrendo...". "Minha senhora, a senhora aguarde um momento, agüente firme aí, que a gente vai lhe socorrer agora mesmo, está bem?". "Socorro, eu estou morrendo...". Bateram o telefone. Ela ficou parada, segurando firme o aparelho com as duas mãos, ouvindo o som intermitente da ligação cortada, olhando fixo para o meio da rua, e dizendo baixinho, para si mesma: "Socorro, eu estou morrendo... Socorro, eu estou morrendo...". Até que ouviu uma sirene se aproximando. A viatura riscou diante dela, desceram dois homens fardados, lindos, atraentes, majestosos, um deles segurou firme no braço dela e a empurrou para dentro do carro. O terceiro, que esperava ao volante, engatou a primeira marcha e falou: "Vambora, carcaça". No dia seguinte Elizabeth foi notícia nos programas de rádio. Detida na delegacia como presa correcional, ela foi entrevistada por um radialista da voz bonita. Ele perguntou se ela não tinha vergonha, uma mulher naquela idade ficar passando trote para o Corpo de Bombeiros. Elizabeth baixou os olhos e não soube o que responder.


Marcondes Araujo

Feira de Santana, BA
marcondes.campos@yahoo.com.br
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