Escrúpulo

27/09/2017


O apito do guarda-noturno riscava a madrugada e invadia meu quarto, tornando mais angustiosa minha luta insana para adormecer. Virava-me na cama, amassava o travesseiro, tirava e repunha o cobertor, e, aos primeiros sinais de sonolência, o apito do guarda trinava à minha porta, abrindo-me de novo o clarão da maldita insônia. Este tormento já durava meses. Por todo este tempo colecionara um enorme acervo de estranhas sensações, que só as madrugadas atravessadas em branco nos permitem conceber. Ao avançar da noite, quando o silêncio deitava-se de bruços sobre a cidade, eu penetrava lentamente num mundo de aflições, que parecia o exato avesso do mundo vivido por mim durante o dia. Era como uma placa de zinco em vários pontos perfurada, sendo que em um dos lados não havia em nenhum dos furos bordas salientes, mas do outro as bordas se eriçavam para fora, transformando esta face numa autêntica cama de faquir. E era sobre esta cama que eu deitava. Gestos e atitudes que à luz do dia pouco ou nada representavam, tinham, durante a noite, um significado cruel e assustador. Lembro de um caloroso olhar que eu recusara. Por vergonha desviei meus olhos, e aquele gesto, que durante o dia fora timidez, reproduziu-se à noite como arrogância e desdém. Lembro também de um outro olhar. O de um senhor imerso em atônita reflexão. Ao erguer o rosto, ele me notou. E baixou a vista, encabulado, como que flagrado num desigual embate consigo próprio. À noite eu me vi como o mais devasso inquisidor. Também o riso me fez girar no redemoinho da madrugada. Uma risada pura, de um ser simplório, que se esgarçou, adulterada, diante do meu riso inteligente e calculado. Debati-me na escuridão, como se esmagasse uma criança com gargalhadas monstruosas. E tinha o silêncio. A ele recorria, durante o dia, para escapar das futilidades e dos engodos sociais. Mas à noite, o mesmo silêncio vingava-se de mim, reverberando como corneta, anunciando minha solidão, denunciando o meu desamparo. E por fim o ódio. Desaparecia, covarde, durante o dia, mas à noite surgia entre meus estertores, impondo-se aos poucos, fortalecedor. A sonolência, então, tomava conta de mim. Mas aí o apito do guarda trinava. E começava tudo de novo.


Marcondes Araujo

Feira de Santana, BA
marcondes.campos@yahoo.com.br
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