Hemorragia

24/09/2017

Bem que ela tivera um pressentimento ruim na noite anterior. Logo pela manhã, a filha de quinze anos percebeu que algo extraordinário estava para acontecer. Correu e avisou à mãe que a torneira do quintal estava gotejando sangue. Ela foi verificar e constatou que uma gota vermelha pingava a cada cinco minutos. Assustada, apertou o máximo que pôde a torneira. A gota de sangue passou a cair a cada quinze minutos. Arranjou um pedaço de pano e apertou ainda mais a torneira. O sangue foi estancado, mas o esforço lhe provocou um grande desgaste físico, e foi obrigada a voltar para o quarto. Deitou-se, sentindo calafrios. Meia hora depois foi acordada pela filha. Outra torneira gotejava sangue. Desta a vez a da lavanderia. Levantou-se e adotou a mesma providência aplicada à torneira do quintal. O sangue foi estancado. Tornou a deitar-se, sentindo mais calafrios. Sonhou que o marido a arrastava em meio a uma multidão e a obrigava a subir num cadafalso, para executá-lo, ele próprio, na guilhotina. Acordou no momento exato da precipitação da lâmina. A filha a chamava de novo, para avisá-la de outra torneira gotejando sangue. A da pia do sanitário. Correu e aplicou-lhe um torniquete. Começava a sentir-se exausta. Mesmo assim foi verificar as torneiras do quintal e da lavanderia. Percebeu que, apesar dos apertos que lhes aplicara, começava a formar-se, em cada uma delas, uma quase imperceptível gota vermelha. Enrolou as três torneiras com pedaços de plástico. Depois saiu examinando uma por uma as demais torneiras da casa. Abriu cada uma delas e verificou, satisfeita, que jorravam água. Tranqüilizou-se um pouco e voltou para o quarto. A filha comentou que ela estava bastante pálida. Olhou-se no espelho e concordou com a filha. Sentiu as pernas fraquejarem e sentou-se na cama. Perguntou à filha se o marido dera notícia. Ela disse que há três dias não telefonava. Sorriu, conformada. Deitou-se e cobriu-se com o cobertor, recomendando à filha que a deixasse descansar. A filha saiu para vistoriar as torneiras da casa. Descobriu que a da pia da cozinha também já pingava sangue, e que os invólucros de plástico das outras torneiras, colocadas pela mãe, haviam se transformado em três bexigas cheias de sangue. Correu para o sanitário e constatou que também do chuveiro começava a cair uma gota de sangue. Ficou perplexa. Não tinha a mesma desenvoltura da mãe para resolver os problemas da casa. Mas não quis acordá-la. Pensou em chamar um encanador, mas foi surpreendida pelo grito da mãe. Correu para o quarto. A mãe despertava de um pesadelo. Contou que, no sonho, o marido era um garoto malvado, que lhe arrancava a dentadas o mamilo do seio, durante a amamentação. A filha a observou, compadecida. A mãe envelhecera antes do tempo. Uma vida inteira dedicada exclusivamente ao cotidiano do lar. Olhou assustada a brancura dos seus lábios. Resolveu chamar um médico e um encanador. Ajudou a mãe a deitar-se, cobriu-a com um cobertor e voltou aflita para a sala. Antes de telefonar, decidiu verificar de novo como estava a torneira da cozinha. Abriu-a e não conteve um grito de espanto ao constatar estarrecida que jorrava sangue. Fechou a torneira e correu para o telefone. Ligou antes para o médico, mas quem primeiro chegou foi o encanador. Enquanto o sistema hidráulico da casa era analisado, prestava assistência à mãe. Ela estava delirando. Balbuciava palavras desconexas: "Esquecimento", "Distância", "Torneiras", "Alma", "Conformação", "Desconformação", "Sono", "Sonhos", "Muros", "Quintal", "Formatura", "Luar", "Lar", "Detergente", "Adstringente", "Separação", "Hegemonia", "Hemorragia", "Aborto", "Menstruação", ""Desespero", "Compaixão", "Saudade", "Esperança", "Solidão". O encanador gritou da sala que era impossível estancar o vasamento, pois todas as torneiras estavam danificadas, e todo o encanamento hidráulico da casa estava perfurado. O sangue, segundo ele, já se espalhava no subsolo do lar. Era algo irreversível. O médico chegou. Examinou os olhos da mãe e diagnosticou anemia profunda. Ela estava inconsciente. O encanador avisou que para estancar o sangue haveria de cavar o chão, para descobrir e tapar o local exato do vasamento. Neste momento a mãe teve um lapso de lucidez, e desautorizou a escavação, alegando que não permitiria tal invasão à mais íntima privacidade de seu lar. O médico aproveitou a oportunidade para lhe perguntar se havia comido algo que fugisse de sua dieta normal. A mãe pronunciou suas palavras finais: "Nada, nunca comi nada que fugisse de uma dieta normal". A filha estava impressionada com o desdobrar dos acontecimentos. Telefonou para o pai. Ele precisava vir, com urgência. O encanador disse que a hemorragia da casa estava fora de qualquer controle. O médico apertava o braço da mãe na busca insistente de uma veia para injetar-lhe soro. A mãe não mais respondia a qualquer estímulo. As bexigas da torneiras se haviam rompido, e o sangue gotejava ininterruptamente na cozinha, no sanitário e na lavanderia. O líquido vermelho começava a se espalhar pela casa, e entrava no ralo do quintal para escorrer pelo cano e aparecer do lado de fora, correndo rente à calçada por toda a rua. Chamou a atenção dos passantes e da vizinhança. Formava-se, por causa disto, uma aglomeração de gente diante da casa. E ninguém pôde evitar o surgimento dos cães, que lambiam a enxurrada de sangue ao longo de toda a sarjeta. A filha prostrou-se na poltrona, num sinal de que mais nada podia fazer. O encanador sentou-se ao seu lado, e o médico lamentou que o melhor seria chamar um padre para providenciar a extrema-unção. A torneira da cozinha estourou, e de longe podia-se ouvir o barulho do jorro de sangue. A mãe era uma estátua de gesso em cima da cama. O marido chegou, abrindo caminho entre a multidão. Mas já era tarde. A casa toda sangrava, enquanto a mãe, sem um pingo de sangue, dava o suspiro final.

Marcondes Araujo

Feira de Santana, BA
marcondes.campos@yahoo.com.br
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