Lurdinha e as Sete Casas

07/10/2017

Sete Casas. Essas duas palavras eram mágicas para mim. Um dia a elas se juntou o nome de Lurdinha. Pensando bem, foi o contrário. Primeiro veio Lurdinha, depois as Sete Casas. Ou não sei. Talvez as duas, Lurdinha e as Sete Casas, vieram ao mesmo tempo. Ouvíamos os adultos falarem das Sete Casas. Era algo misterioso para nós. Os rapazes falavam dando risadas maldosas: Estive ontem nas Sete Casas. E aí olhavam para nós, recriminando a nossa presença. E nos enxotavam: Menino e cachorro fora! Para mim, as Sete Casas eram aquela construção que eu via, bem distante, isolada na encosta da serra que se erguia ao lado de nossa cidade. Era uma construção simples, retangular, de fachada amarela, com sete portas azuis que estavam sempre fechadas. À sua frente passava a linha de trem. De tanto ouvir aquelas palavras mágicas, eu vivia contemplando, da rua onde morava, aquelas sete portas azuis, que para mim eram as tais Sete Casas. De vez em quando o trem apitava na encosta da serra, e parava diante da casinha amarela, e eu não via o que acontecia por detrás dos vagões. Depois de algum tempo parado, incendiando minha imaginação, o trem seguia viagem, e as Sete Casas reapareciam, solitárias e com as portas fechadas. Eu ficava imaginando que no trem viajavam os rapazes, que lá tinham ido fazer o que nós, crianças, não poderíamos saber. Desconfiava, contudo, que aquelas risadas maldosas tinham qualquer coisa a ver com mulheres. As mulheres perdidas, como a elas se referiam as nossas mães. As mulheres da vida, as raparigas, como diziam nossos pais. As quengas, como diziam os rapazes. E concluía que detrás daquelas sete portas viviam escondidas as tais mulheres perdidas, que eu não sabia exatamente o que eram, nem porque assim eram chamadas. Sabia apenas que, pelo jeito com que minha mãe falava, devia ser por causa de alguma coisa muito feia que elas faziam. E ficava a me perguntar como elas viviam ali, dentro daquela casa, que estava sempre com as sete portas fechadas. Viveriam aprisionadas? Sujas, magras e com os cabelos desgrenhados? Era dessa forma que elas receberiam os rapazes? O que fariam com elas os rapazes no interior das Sete Casas? E às vezes, sentado na calçada de minha casa comendo um pão com manteiga que minha mãe sempre preparava para mim depois do banho das quatro da tarde, eu ficava contemplando as Sete Casas e sentia muita pena daquelas mulheres.

Quem me fez descobrir que aquela casinha amarela de sete portas azuis pendurada na encosta da serra não era a tão comentada Sete Casas foi Lurdinha, a moça que veio da roça e passou a morar na casa de dona Lindaura, trabalhando como empregada doméstica. Lurdinha já tinha peito e tudo, mas brincava com a gente como se ainda fosse uma criança. Não participava das brincadeiras de boneca com as meninas, para isso ela já estava muito desenvolvida, mas era quem comandava, à noite, depois de lavar os pratos e arrumar a cozinha, as brincadeiras de esconde-esconde, boca de forno e chicotinho-queimado. No início ela só brincava com os meninos menores, como eu, mas logo foram se chegando para nossa turma os meninos maiores, que começavam a mudar de voz, e que brincavam de futebol na outra extremidade da rua. Eles se chegaram e foram tomando conta de nossas brincadeiras. E se enfiavam com Lurdinha pelo interior das casas em construção, ou pelas moitas que cresciam nos terrenos baldios, nas brincadeiras de esconde-esconde. Nós, os menores, ficávamos procurando eles pelas varandas e pelos jardins das casas, com medo de enfrentar a escuridão dos lugares onde eles se escondiam. E demoravam tanto nos esconderijos que nós desistíamos de procurá-los, e arranjávamos outra coisa para brincar até que eles se cansassem de se esconder. Depois eles reapareciam, dando risada.

Um dia dona Lindaura atraiu a atenção de toda a rua. Chamou para a porta da casa dela todos os meninos maiores, e perguntou em voz alta, para toda a vizinhança ouvir, quem tinha feito mal a Lurdinha. Eu fiquei sem entender, porque não sabia o que era fazer mal. Os pais dos meninos maiores foram se chegando para saber o que estava acontecendo, e dona Lindaura repetia que alguém tinha feito mala Lindaura, que a menina agora estava perdida, que não sabia o que fazer porque os pais dela confiaram a menina a mim. Os meninos maiores ouviam de cabeça baixa, alguns dando risadinhas, mas ninguém respondia nada. Enquanto dona Lindaura gritava esse moleque tem que aparecer, alguém tem que tomar uma providência, eles foram se dispersando e mais adiante se juntaram ao lado de um poste, e ficaram conversando baixinho. Eu me aproximei e ouvi eles dizendo que havia sido o Vadinho. Vadinho era um dos rapazes que costumavam comentar as visitas que faziam às Sete Casas. Uma vez ele contou que havia pegado uma doença do mundo lá nas Sete Casas. Nos dias seguintes todo mundo falava que tinha sido Vadinho que havia feito mal a Lurdinha, e eu continuava sem saber o que era fazer mal. E não perguntava a ninguém, pois tinha vergonha de perguntar e também sentia um pouco de medo de ficar sabendo o que era fazer mal. Mas Vadinho era um rapaz esquentado, e tão logo descobriu que o nome dele estava na boca de todo mundo, tomou umas cachaças no bar de seu João e lá mesmo disse em voz alta, para todo mundo ouvir, que tinha comido, sim, a Lurdinha, mas que antes dele o serviço já tinha sido feito por seu Flamário. A notícia correu logo a rua e pegou todo mundo de surpresa. Seu Flamário era o marido de dona Lindaura. No dia seguinte, todo mundo viu Lurdinha saindo de casa com uma maleta na mão e uma mochila nas costas. Saiu chorando, sem falar com ninguém, e ninguém perguntou a ela o que tinha acontecido. Ninguém também foi perguntar nada a dona Lindaura. E não se falou mais sobre o assunto na minha rua.

Depois de algum tempo, ouvi os rapazes contando que haviam encontrado Lurdinha nas Sete Casas. Tentei ouvir mais detalhes do que eles falavam, entre risadas maldosas, mas um deles me enxotou: Menino e cachorro fora! Aí minhas atenções se voltaram ainda mais para a casinha de sete portas azuis lá no alto da serra, na frente da qual de vez em quando parava um trem. E ficava a me perguntar: Será que Lurdinha está lá? E imaginava ela aprisionada, magra, suja, com os cabelos desgrenhados, recebendo a visita de Vadinho e de seu Flamário.

Um dia fui à feira com minha mãe. Lá, no meio do burburinho, avistei entre as barracas uma moça que usava um vestido bem curto, pulseiras, brincos e colares vistosos, e tinha o rosto besuntado de maquiagem. Falava alto e dava muita risada, cercada por um grupo de homens que bebiam cachaça e mexiam nos seus cabelos encaracolados. Era Lurdinha. Pude vê-la afastar-se, desvencilhando-se de beijos e abraços, e rumar na direção de um beco, acompanhada por um rapaz. Saía do beco um som muito alto, de muitas músicas misturadas. Puxei o braço de minha mãe e perguntei a ela que lugar era aquele. Ela respondeu, com a cara fechada: É a tal das Sete Casas.

Depois disto, perdi o interesse em olhar para a casinha amarela de portas azuis pendurada na encosta da serra. E passei a sonhar, todas as noites, comigo e Lurdinha brincando no beco das Sete Casas. Eram brincadeiras estranhas e deliciosas, que aconteciam sempre no escuro. Acordava na manhã seguinte feliz da vida, mas com uma incômoda sensação de ter feito mal a Lurdinha.

Marcondes Araujo

Feira de Santana, BA
marcondes.campos@yahoo.com.br
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