Minha prima Helena

14/10/2017

- Mas mãe, ela não está presa?

- Está, meu filho.

- Então por que ela estava naquela sala, e não naquele lugar que tem grades?

- Ela só foi para a sala para nos receber, mas depois os policiais devem ter levado ela de volta para o lugar que tem grades.

Foi na sala da delegacia que minha prima Helena nos recebeu. Quando chegamos, ela estava sentada, e, ao nos ver, levantou-se emocionada, e abraçou minha mãe, chorando bastante. Minha mãe também chorava. Depois ela voltou-se para mim. Agachou-se, deu-me um abraço apertado e afastou-se um pouco, olhando-me nos olhos e passando a mão no meu rosto.

- Meu Deus, como você cresceu. Como está bonito. Da última vez que o vi, você ainda era uma criancinha de colo.

Eu não lembrava de minha prima Helena. Mas havia construído sua imagem em minha mente. E era uma imagem feia. Não saberia descrevê-la, mas era algo diabólico. Sempre que pensava nela, sua imagem aparecia misturada à de Calais, um homem que tinha assassinado outro a facadas, no meio da feira, e que eu vi sendo levado preso pela polícia. Eu estava na porta do armazém de meu pai, e ele passou perto de mim, com as mãos amarradas para trás, a roupa manchada de sangue. Os olhos dele eram avermelhados, havia ódio nos seus olhos. Era assim que eu imaginava minha prima Helena. Com os olhos vermelhos e cheios de ódio. Ela também era assassina. Eu não vi Calais cometer o crime, mas ouvi as pessoas contando e podia facilmente imaginar como foi: segurou o homem pelo colarinho, puxou a arma da cintura e começou a esfaqueá-lo no peito e na barriga. Foram nove facadas. O homem caiu ensanguentado e morreu lá mesmo, no meio das barracas, cercado pelo povo. Eu imaginava a cena. Mas não conseguia imaginar o crime de minha prima Helena. Ouvia meus pais contando que ela pariu uma criança às escondidas, no sanitário que ficava no quintal, e depois jogou o bebê dentro da privada, que era, na verdade, um buraco cavado no chão, tampado por duas tábuas que também serviam para a pessoa se acocorar. Uma perdida. Uma sem-vergonha. E ainda por cima, assassina, ouvia meu pai dizer. Deus haverá de perdoá-la, dizia minha mãe. Um monstro. Pior do que Calais, insistia meu pai. O crime foi descoberto pela empregada, que viu o cadaverzinho misturado às fezes. Ninguém, a princípio, soube de quem era a criança morta, pois minha prima havia escondido a gravidez durante todo o tempo, colocando uma bacia na barriga para comprimi-la e usando sempre vestidos folgados. Mas logo ela foi traída pelo próprio comportamento, parecia uma louca, dizia minha mãe, e confessou o crime para o pai. Foi ele mesmo quem a levou para a delegacia.

Eu tentava reconstituir tudo isto em minha mente, mas era inútil. Mesmo porque não sabia exatamente como uma mulher tinha bebê, nem como uma criança podia ser enfiada numa privada, nem como uma bacia podia disfarçar uma gravidez. As imagens se embaralhavam e se diluiam, e sobrava apenas o rosto desfigurado de minha prima, com os olhos vermelhos e cheios de ódio, e então a imagem dela transformava-se rapidamente na fisionomia de Calais.

Por isto fui surpreendido por aquele rosto amável, de sorriso doce, que de repente apareceu molhado de lágrimas, à minha frente, com os olhos vermelhos. Mas não havia ódio neles, havia ternura. Minha prima voltou a sentar-se e me colocou no colo. Passou todo o tempo me acariciando, enquanto conversava com minha mãe. Lembro vagamente do que elas falavam, mas fixou-me na memória sua lamentação, repetida várias vezes: Meu pai nunca me visitou.

- Por que tio Jonas não visita Helena, mãe?

- Ignorância, filho, ignorância.

- Por que ela matou o filho, mãe?

- Loucura.

- Quem é o pai do filho de Helena, mãe?

- Quem sabe, filho, quem sabe...

Depois desta visita, passei a imaginar minha prima Helena desvencilhada da imagem de Calais. Não era mais uma imagem diabólica. Ela aparecia na minha mente com aquele sorriso doce, com aquele olhar cheio de ternura.

- Quando é que a gente vai visitar a prima Helena de novo, mãe?

- Não sei, filho. Lá é muito longe, um dia inteiro de viagem. Qualquer dia a gente volta a visitar sua prima.

Não pudemos mais visitar a prima Helena. Um dia chegou a notícia que ela havia se enforcado.

- Sozinha, mãe?

- Sozinha, filho.


Marcondes Araujo

Feira de Santana, BA
marcondes.campos@yahoo.com.br
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