O pescador

24/10/2017

Quando já estávamos reunidos na porta de casa, meu pai me pediu que fosse comprar duzentos gramas de carne fresca no açougue que ficava no quarteirão vizinho. Deu-me o dinheiro, e quando eu me afastava ainda alertou em voz alta: "Carne fresca, ouviu?".

A caminhonete já estava cheia de gente, esperando a hora de partirmos para a pescaria. Meu pai tinha bastante pressa, pois já estávamos atrasados para o encontro com a pessoa que nos acompanharia até a fazenda onde passaríamos o fim de semana, e onde havia um açude cheio de tilápias e tucunarés.

Havíamos acordado bem cedo, por volta das seis da manhã, para arrumarmos as coisas que levaríamos para a viagem. Já no dia anterior meus primos vieram do bairro onde moravam, do outro lado da cidade, para dormir em nossa casa. E trouxeram uma amiga que foi a coisa mais maravilhosa que eu já tinha visto até então. Chamava-se Márcia, era colega de escola de minha prima Adelita. Devia ter seus doze ou treze anos, tinha os cabelos lisos e castanhos e os olhos esverdeados. E um sorriso que só hoje eu tenho consciência de que era sedutor.

A presença de Márcia em minha casa me deixou atordoado. Não sabia o que falar, nem como agir diante dos meus primos nem de meus próprios pais. O grupo havia chegado no início da tarde, e logo houve a separação tradicional entre meninos e meninas. Minha irmã puxou Adelita e Márcia para a varanda e meus primos me arrastaram para o quintal. Mas de vez em quando eu arranjava um pretexto para ir até a porta de casa, onde as meninas conversavam sob o pé de algaroba, mas não ousava olhar diretamente para Márcia. Saía até o portão, fazia de conta que espiava o movimento na rua e gritava qualquer coisa para algum colega que passava por ali de bicicleta, sem sequer ouvir resposta. Depois retornava para o quintal.

Estávamos fazendo planos para a pescaria quando as meninas resolveram nos visitar. Acho que Márcia ainda ouviu quando eu contava para meus primos que havia enchido um cesto de tilápias que eu mesmo tinha pescado, na última visita que fizemos ao açude. E que desta vez dobraria a quantidade de peixes. Os meninos riam da minha cara, e quando percebi a presença de Márcia me calei. "Vai, continua com esta história de pescador", provocou minha irmã, dando risada. Eu fiquei sem saber onde colocar a cara, e acho que também Márcia deu risada de mim. "Ele nunca pescou na vida, e vem com essa conversa", insistiu minha irmã. "Pesquei sim", disse olhando furiosamente para minha irmã, e me retirei bruscamente, as orelhas queimando, ouvindo as gargalhadas dos meus primos, que gritavam: "Volta, pescador! Volta, pescador!".

À noite, durante o jantar, Márcia ficou bem diante de mim. Enquanto tomávamos sopa, ela de vez em quando me olhava, e dava aquele sorriso que eu hoje tenho consciência de que era sedutor, mas que naquele momento eu não sabia se era mesmo de sedução ou de zombaria. Por isto eu ficava ainda mais desajeitado, sem saber se ela estava me apreciando ou me chamando, em pensamento, de "pescador". Felizmente nenhum dos meninos falou sobre a conversa que havíamos tido no quintal, porque eu realmente tinha inventado aquela história, e se o assunto fosse colocado na mesa meu pai com certeza iria me desmentir.

Eu nem sabia pegar numa vara de pescar, e da única vez que havia tentado fisgar um peixe ele arrebatou a vara de minhas mãos. E nem para acompanhar meu pai nas pescarias eu prestava, porque fazia barulho no momento que não podia, e me recusava a matar com um pedaço de pau o peixe fisgado que ficava pulando para fora do cesto, simplesmente porque tinha pena do infeliz.

Mas quando fomos dormir eu coloquei na cabeça que no dia seguinte iria participar da pescaria, e que iria fazer de tudo para pescar pelo menos um tucunaré para impressionar Márcia e calar a boca dos meus primos e de minha irmã. Demorei um bom tempo para pegar no sono, só pensando como faria à beira do açude: seguraria com muita firmeza a vara de pescar, permaneceria o tempo todo calado, como meu pai, e assim que sentisse a fisgada do peixe puxaria a vara com força e rapidez, até ver o peixe saltando fora d´água e se balançando no ar com a boca presa pelo anzol. E imaginava Márcia me observando à distância, só que eu fazia de conta que não estava percebendo o seu olhar, e depois que pescasse umas quatro tilápias e uns cinco tucunarés eu colocaria o cesto no ombro, como fazia meu pai, e me dirigiria com passadas largas e vagarosas até a casa da fazenda, onde meus primos abririam caminho para eu passar, e jogaria o cesto no alpendre para então participar da conversa dos homens contando detalhes da pescaria. De longe Márcia continuaria me observando, mas o pensamento só ia até aí, porque eu não conseguia imaginar como se daria uma aproximação entre nós. Toda vez que tentava, o pensamento se dissipava. Só depois, ao pegar no sono, foi que sonhei que pescava um tubarão, e que Márcia comemorava o meu feito me abraçando e me dando um beijo molhado e bem demorado no rosto.

Acordei, no dia seguinte, lembrando do sonho nos seus pormenores, mas sabendo que era mesmo apenas um sonho. Na hora do café, Márcia nem olhou para mim. Durante a arrumação das nossas coisas para a viagem, nenhum de nós tocou no assunto da pescaria. Os meninos só pensavam mesmo em tomar banho na parte rasa do açude, e as meninas planejavam fazer um guisado e brincar no balanço pendurado no pé de cajarana que havia no terreiro da casa. Eu ficava pensando se acompanhava os meninos, se seguia meu pai na pescaria ou se ia ficar tirando frutos da mangueira que também existia no terreiro da casa.

Na hora da partida, com todo mundo em cima da caminhonete, meu pai se queixava de que não tivera tempo de providenciar as minhocas, e resolveu que pedacinhos de carne fresca poderiam muito bem servir de isca para os peixes. Tirou o dinheiro do bolso e mandou-me comprar duzentos gramas de carne no açougue do quarteirão vizinho. E na hora que eu ia saindo me alertou em voz alta: "Carne fresca, ouviu?".

Fui cumprir a missão que nunca havia cumprido. Cheguei na banca do açougueiro e disse que meu pai tinha me mandado comprar duzentos gramas de carne fresca. O homem nem olhou para mim, e cortou um pedaço de carne que chegava a brilhar de tanto sal. Peguei o pedaço de carne embrulhada num papel de jornal e voltei correndo para a caminhonete. Na hora que entreguei a encomenda, meu pai me olhou com tanto ódio que senti as pernas fraquejarem: "Isto por acaso é carne fresca, seu imbecil?", e jogou com força o pedaço de carne para um cachorro sarnento que estava nas proximidades. "Vambora, no caminho a gente providencia umas iscas", disse impaciente minha mãe, já sentada na cabine.

Eu fiquei sem iniciativa para subir na caminhonete, os meninos começaram a me chamar, me estendendo a mão e dando muitas risadas: "Vambora, pescador! Vambora, pescador!". Eu subi na carroceria como se estivesse flutuando em nuvens. Sentei, sem saber para que lado virar o rosto, bem em frente à Márcia, que me olhava com um sorriso que até hoje queima dentro de mim.


Marcondes Araujo

Feira de Santana, BA
marcondes.campos@yahoo.com.br
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