Redenção

24/09/2017

Avistei-o de longe, da porta que dava acesso ao amplo salão no interior do bar. O aparelho de som tocava alguma coisa de Tom Jobim. O dono do estabelecimento distraia-se detrás de uma antiga caixa registradora, folheando com avidez um velho e surrado catecismo do Carlos Zéfiro. Assustou-se ao perceber minha presença. Pedi uma dose de cachaça, acendi um cigarro, e depois de beber um gole e dar duas longas tragadas observando o movimento da rua, voltei-me para a entrada do salão, que ficava separado do mundo de fora apenas por uma cortina de pano amarelado e seboso. O velho estava lá, tomando uma cerveja e olhando em minha direção. Reconheci-o com facilidade, mesmo com o salão estando com as lâmpadas apagadas. A luz do sol penetrava por uma porta ao lado, que dava acesso aos quartos que ficavam no quintal, e incidia diretamente sobre ele, iluminando sua face esquerda e fazendo brilhar os cabelos grisalhos e revoltos que emolduravam seu rosto arredondado e de bochechas flácidas. Aquele velho me odiava. Mas naquele momento não podia me reconhecer. Em pé na porta do salão, com a cortina afastada para um lado, eu era apenas uma silhueta negra recortada pela luz do sol que vinha da rua, do lado de fora do bar, onde fervilhava o comércio barulhento e desordenado dos camelôs. Sabia que me olhava. Olhava-me com aqueles olhos esverdeados, que um dia, muito tempo atrás, haviam encantado minha irmã. Tornaram-se, com o passar do tempo, sombrios, aqueles olhos esverdeados. Havia pelo menos dez anos que não nos encontrávamos. Há quinze anos sentara ao meu lado em um banco da praça, depois de rondar-me à distância como um náufrago que procura aproximar-se desesperadamente de uma tábua em alto-mar, tentando vencer a resistência das ondas formadas por sua própria covardia e indecisão. Era uma noite fria de inverno, a praça estava semi-deserta, apenas dois ou três casais de namorados se refugiavam embaixo dos bambuzais. O velho, que ainda não era velho na ocasião, mas um homem em plena maturidade, sentou-se ao lado daquele adolescente imberbe, que o tinha quase como a um pai. Antes de dirigir-me ao bar, fiz uma última e tardia visita à minha irmã. Reencontro fugaz, de despedida final, depois de tantos anos de distanciamento e renegada cumplicidade. A mesma empáfia de sempre, o mesmo jeito autoritário e sufocador. A mesma aura sem brilho de corroída aristocracia emprestada. Cadê o velho? - perguntei. Por aí, tentando se enganar. Olhei em volta. Havia na casa uma atmosfera de velhos bons tempos que não voltam mais. Uma poeira de passado festivo, embalado ao som de bossa nova, parecia impregnar todos os móveis e paredes da casa, e me dava vontade de espirrar. E de vomitar. Pedi outra dose de cachaça. A música de Tom Jobim, dentro do bar, misturava-se aos sons de Psirico e Calcinha Preta, que vinham das bancas de camelôs do outro lado da rua. Perguntei ao dono do bar quem era o homem que estava sozinho no salão. É gente distinta, de família tradicional. Entraram no bar duas mulheres com os vestidos muito curtos, os rostos besuntados de maquiagem, e pediram duas doses de conhaque. Foram rapidamente até a entrada do salão, entreabriram a cortina sebosa, voltaram felizes ao balcão, beberam as doses em um só gole, estalaram a língua e deram gargalhadas. A seguir, avisaram ao dono do bar que retornariam logo mais, e saíram rapidamente, sem pagar a conta. Vem sempre aqui? - perguntei. Quem, essas raparigas? - Não, o velho que está no salão. O homem pegou os copos deixados pelas mulheres, colocou-os na pia e voltou-se para mim. Vem aqui todas as segundas-feiras, sempre neste horário, quando não tem ninguém. Traz um disco de casa e pede para colocar estas músicas insuportáveis. O velho, quando ainda não era velho, sentou-se ao meu lado. Não conseguia me olhar. Parecia querer desculpar-se por tudo que eu testemunhava na sua vida de duas faces com minha irmã. Depois de alguns minutos em silêncio, falou com a voz embargada: Não é verdade o que ela lhe conta. Ela é que me faz ser assim. Falava sobre algo que imaginava ser do meu conhecimento, mas que nunca houvera sido tratado comigo por minha irmã, nas conversas em voz baixa que tínhamos na varanda da sua casa. Tratávamos, na verdade, das desavenças entre nossos irmãos, por causa da complicada partilha de uns poucos bens que em breve seríamos obrigados a disputar. Eram conselhos, apelos e instruções que ela dava ao irmão mais jovem, que sempre procurava refúgio no seu lar. Pedi outra dose de cachaça. Era meu último dia na minha terra natal. Partiria de volta para bem longe, para sempre, levando a mísera parte que me coubera no espólio estilhaçado. A velha - sim, também ela estava velha - recebera-me com a frieza de quem não possui mais falsos encantos para ostentar, nem apelos, conselhos ou novas instruções para dar, nem bens familiares para compartilhar. Havia muito tempo acabaram as rodas de bossa-nova na luxuosa sala de visita, onde circulavam, entre os convidados especiais, garrafas de champanhe e de uísques caros, e pairava um clima de afetada harmonia conjugal. Restaram as desilusões sociais, os desarranjos matrimoniais, as explosões matriarcais, as ordens e caprichos cumpridos servilmente pelo marido finalmente subjugado, mas que ainda tinha o sobrenome emoldurado e pendurado na parede da sala de estar. Há quanto tempo? - perguntou o cunhado neófito e embasbacado. Pelo menos quatro anos, respondeu o homem maduro, com a voz embargada. Resolvi pedir uma cerveja. Sentei-me a uma mesa próxima à porta que dava para a rua. Servia de linha divisória entre as duas ondas sonoras que se chocavam no ambiente: vindo de dentro do bar, propagava-se suavemente Eu sei que vou te amar, por toda a minha eu vou te amar; vindo do outro lado da rua, rebentava aos meus pés Você não vale nada mas eu gosto de você, tudo o que eu queria era saber porquê. A velha falou em perdão. Em compreensão. Ele virou-me as costas, argumentei. Lembrava-me do episódio: dias depois da confissão, o velho, que ainda não era um velho, recusou-me um cumprimento. Envergonhava-se, odiava-se, odiava-me. Passou a repudiar o seu confessor, a quem pretendera apenas justificar-se por uma fraqueza de alcova, por intimidades que julgava equivocadamente serem do conhecimento do interlocutor surpreendido. Com outras eu conseguiria, afirmou, respirando fundo e olhando para o céu. Já tentou? Não, não havia tentado. Não tenho coragem. Eu e minha irmã nos abraçamos pela última vez. Um abraço frio, burocrático. Procure ele, deve estar naquele bar. Ela sabia de tudo, mas fazia de conta que não. Era, certamente, uma forma de redimir-se. Tomei um gole de cerveja e sorri, lembrando-me de A curta e feliz existência de Francis Macomber, de Ernest Hemingway. Ainda não havia terminado a cerveja, quando as duas mulheres besuntadas de vermelho e roxo chegaram trazendo uma garota enfeitada para o sacrifício. Não devia ter mais de treze anos. Estava tão besuntada quanto as outras, e tinha uma expressão de espanto. Dirigiram-se diretamente ao balcão, sem me olhar. Trocaram algumas palavras com o dono do bar, entraram no salão, puxando a menina, e cinco minutos depois retornaram, sem a garota. Voltaremos daqui a meia hora, falaram para o homem, e se retiraram. Tomei o último gole da cerveja. Levantei-me e fui até a entrada do salão. Entreabri a cortina. O velho não estava mais lá. Virei-me e percebi que o dono do bar me olhava. Não dissemos nada um para o outro. Apenas paguei a conta. Dali iria direto para a rodoviária. Quando saí do bar, achei que talvez o velho já não me odiasse mais.

Marcondes Araujo

Feira de Santana, BA
marcondes.campos@yahoo.com.br
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