Sincronicidade

29/11/2017

As lembranças podem ficar grudadas em nosso inconsciente como resíduos quase materiais do passado. E podem se interpenetrar, solidamente, de forma quase palpável, com as sensações do presente.

Da mesma maneira, o espaço físico em que se manifestaram acontecimentos de outrora pode se estender além dele próprio e pairar no tempo, para que sirva eternamente de cenário real para a projeção das lembranças, todas as vezes que estas o requisitar.

Isto certamente explica o amálgama de sensações em que me vejo mergulhado ocasionalmente quando acordo, nas primeiras horas da manhã. Ainda entorpecido pelo sono, muitas vezes me surpreendo encontrando dificuldades em discernir onde de fato estou: se na minha casa atual, que serve de residência para mim, para minha mulher e os meus filhos, ou se na casa dos meus pais, onde nasci e me criei.

Sei que me encontro na minha casa atual, mas as primeiras impressões que tenho, e das quais levo algum tempo para me desvencilhar, é de que estou na casa dos meus pais.

A casa onde moro não tem varanda. A porta principal dá logo para a garagem, que é separada da rua apenas por um jardim estreito e um muro alto com portão de ferro. A janela do meu quarto dá diretamente para este jardim, na verdade um canteiro mal cuidado, onde duas roseiras sem flores tentam sobreviver à falta de água e ao ataque dos insetos. Além do muro e do portão, estende-se uma avenida asfaltada, por onde escorre a fúria da cidade grande.

A casa da minha infância possuía uma varanda, que ocupava o lugar correspondente à garagem da minha casa atual. E o jardim em frente, para onde se abria a janela do meu quarto, era amplo e bem cuidado, eternamente florido. Um muro baixo, adornado por combogós, e um portão de madeira envernizada, separavam a casa da rua sem calçamento, onde desfilava o cotidiano pacato da minha cidadezinha.

É este cotidiano que, dissolvido nas franjas do tempo, de vez em quando emerge das entranhas da memória e pinga sobre minha alma. E confunde-se com as sensações provocadas pelo burburinho que vem da rua, nas primeiras horas da manhã. Custo a distinguir o presente do passado. Esforço-me para me situar no cenário real da casa onde moro. Não consigo sentir a garagem, o jardim estreito, o muro alto e o portão de ferro. No lugar deles o que sinto é a varanda, o jardim florido, o muro baixo e o portão de madeira envernizada.

Ruídos que vêm da rua, traindo a pulsação do presente, chegam a mim como estímulos sensoriais do passado. Um grito, o ronco de um carro, o som de uma buzina, uma risada, o latido de um cão, são ecos da minha infância.

O gato Mimi, preto e valente, escondia-se por detrás das moitas do jardim para saltar, na sua brincadeira feroz, em nossas pernas. Morreu atropelado, no meio da rua, por um carro. Arrastou-se até a calçada de nossa casa, com um olhar de súplica e de dor. Minha mãe chorava, sem poder fazer nada. A meninada toda zumbia em volta, assistindo a agonia do gato Mimi.

Um zumbido de gente na frente de casa, nas primeiras horas da manhã. A minha agonia, sem saber onde de fato estou. Minha mulher me sacudindo, enérgica: "Acorda, acorda, mataram um menino de rua aí na porta".


Marcondes Araujo

Feira de Santana, BA
marcondes.campos@yahoo.com.br
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